A Garganta da Serpente
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O Mistério da Floresta

(Renata S. Guilger)

- Acha que foi uma boa ideia?

- Boa ideia? Está brincando! Não chegaríamos lá nunca, se não fosse assim!

- Mas eu penso que...

- Não pense. Só aproveite o passeio.

Era um dia ensolarado e seco, no início no inverno. No meio de um campo árido, uma estrada estreita parecia sem fim, cruzando de horizonte a horizonte, e nela podia-se ver um único carro: um Honda Civic branco, reluzindo enquanto aproveitava a solidão para exceder todos os limites de velocidade que pudessem existir ali, naquele lugar no meio do nada.

* * *

Três horas antes...

- Só tenho o Civic agora. Mandei os carros para revisão. Você sabe, faço isso sempre.

- Não posso pagar pelo Civic.

- Faço um preço bem barato pra você. Vejo que estão precisando - o atendente sorriu com o canto dos lábios, ironicamente, enquanto via o Gol prata ser levado pelo guincho da companhia de seguros. - Confio em você, sei que não vai fundir meu motor.

- Qual o problema desse carro? Como vai deixar eu alugar um Civic pagando tão pouco?

- Quer saber? Fui com a sua cara, e estou louco pra ir embora, hoje é meu aniversário de casamento. É meu último carro, depois dele posso fechar a loja sem peso na consciência.

- Bem...

O rapaz olhou para a namorada. Ela não disse nada.

- Então está bem. Eu levo o Civic.

- Uma semana - o homem carimbou um papel. - Boa viagem.

* * *

A música tocava alta, e Cristiano cantava junto, com o braço para fora do vidro aberto. Julia não parecia tão animada, no entanto.

- Ju, aproveite o passeio - ele repetiu. - Eu sinto muito pelo seu carro. Quando voltarmos, vamos resolver tudo com a seguradora.

Cristiano abaixou o volume da música e continuou seguindo, um pouco mais devagar. Quem sabe isso tranquilizasse a namorada. A viagem começou a ficar monótona depois de tanto tempo na mesma paisagem, e Julia havia acabado de dar um bocejo longo quando...

BAM!!!

... o carro deu um pulo, fazendo um barulho alto e assustando os dois, que já nem prestavam mais atenção no caminho.

- O que é isso? - Julia gritou. - Cris, cuidado!

Cristiano freou, e perdeu o controle do carro, que rodopiou, até que conseguiu parar, meio pra fora da pista, levantando uma nuvem de poeira.

- O que foi aquilo? - Julia perguntou, olhando para trás. Cristiano estava estático, olhando para frente, as mãos ainda no volante, e o coração disparado pelo susto. Não fosse a estrada vazia, provavelmente os dois teriam morrido.

- Parecia um pneu - ele murmurou, e desafivelou o cinto de segurança com dificuldade. - Eu sabia! - Cristiano gritou, enquanto tentava sair do carro, recuperado do susto. - É claro que essa droga não custou barato à toa! Tinha que ter algum problema! Aposto que perdemos um pneu! No mínimo, estavam todos carecas!

Julia desceu do carro também, olhando atentamente os pneus.

- E então, qual deles foi? - ela perguntou, vendo os pneus do seu lado intactos e reparando que eram pneus recém comprados.

Cristiano olhou para ela, confuso.

- Cris? Qual estourou? Vamos trocar!

- Não, Julia... - ele murmurou, coçando a cabeça. - Nenhum pneu estourou. Estão todos inteiros...

* * *

A viagem não continuou tão bem depois do incidente. O casal não trocou uma palavra depois do que aconteceu, e os dois viajavam sérios e concentrados em seus pensamentos. O céu começou a mudar de cor conforme o sol sumia, e ao mesmo tempo a estrada saía do ambiente árido e começava a entrar no meio de árvores grandes, espaçadas no começo e cada vez mais juntas conforme andavam. Quando o sol se pôs completamente, Julia e Cristiano estavam guiando numa estrada ainda deserta, no meio de uma densa floresta.

Cristiano olhava de um lado para o outro, intrigado. Diminuiu um pouco a velocidade, ligando o farol alto do carro.

- O que foi? - Julia perguntou, percebendo a agitação do namorado.

- Não sei... não me lembro desse lugar. Dessa parte da estrada. Nunca vi essa floresta.

- Como assim?

- Olha, eu... não sei, depois daquele deserto, começava uma vila. Não tinha uma floresta. Essa floresta não pode ter crescido desde a última vez que passei por aqui.

- Cris... tem certeza? Não pegamos alguma saída errada?

- Impossível, não havia saídas...

BAM!!!

Outra vez o mesmo barulho, dessa vez mais forte, fez o carro sacudir e Cristiano só não perdeu a direção dessa vez porque o carro já andava em velocidade baixa. O coração dos dois acelerou tanto que as batidas pareciam vir de outro lugar. O mesmo barulho misterioso, pela segunda vez, no meio de uma floresta totalmente escura, criava uma situação bastante diferente do que havia acontecido na primeira vez.

- O... o que foi isso? - Julia choramingou.

- E-eu não sei...

- Cris... estou com medo!

- Deve ser algum defeito no carro - ele falou, agora tremendo tanto que levou mais tempo para livrar o cinto de segurança - vamos sair e olhar.

- Cris, pode ser perigoso!

- Se quiser, fique no carro. Eu vou olhar - ele pegou uma lanterna no banco de trás e saiu.

Julia também saiu do carro, sem conseguir segurar a ansiedade. Entre ficar sentada e sair com Cristiano, ela se sentia mais segura com Cristiano.

Em silêncio, os dois rodearam o carro lentamente, examinando com a lanterna acesa. Uma brisa estranhamente gelada começou a soprar, fazendo Julia se encolher dentro das roupas leves que vestia.

- Parece tudo certo por aqui... - o rapaz sussurrou, como que com medo de fazer qualquer ruído.

Mais uma vez ele repetiu o exame, enquanto Julia, já mais segura, seguia pelo outro lado. Ela chegou na parte de trás do carro e agachou-se para olhar embaixo. Nesse momento,

BAM!!!!!!!

... outra vez o barulho, dessa vez mais forte. O carro sacudiu, e Julia caiu sentada três passos para trás, gritando de susto.

- Cris! Tem alguma coisa... tem alguma coisa...

- O que foi, Julia? Viu alguma coisa? - ele correu em seu socorro, vindo da frente do carro, quando ouviu o barulho.

- ...no porta-malas... - ela sussurrou, já sem voz, os olhos arregalados, em pânico.

Cristiano olhou.

BAM!!!!

Os dois deram um salto, assustados, sem sair do lugar. Cristiano abraçava Julia, e pôde ver, atônito como ela, o carro balançar enquanto o barulho continuava, cada vez mais frequente.

BAM!!! BAM!!! BAM!!! BAM!!!

- Tem alguma coisa aí - ela choramingou. - Cris, o que vamos fazer?

- Vou ligar pra polícia - ele correu para dentro do carro e pegou o celular. - Droga! Sem sinal!

De repente, o barulho parou. Os dois jovens se olharam, em silêncio. Cristiano, sem tirar os olhos da traseira do carro, esticou o braço e alcançou a chave que ainda estava no contato, apertando o botão do sensor, que destravou o porta malas.

- Cristiano, você não vai...

Julia levantou-se do chão, enquanto o namorado se aproximava do porta-malas, com o coração aos pulos.

- Cuidado - ela sussurrou.

Ele tocou cuidadosamente o botão com os dedos, e como não viesse mais nenhum ruído do carro, aproveitou um momento de coragem e apertou o botão com violência, dando um pulo para trás enquanto a tampa era liberada e subia calmamente, soltando um som macio.

Os dois se abraçavam, e vendo que nada aconteceu, se aproximaram devagar com a lanterna.

Quando chegaram perto, ficaram pálidos de medo.

O porta-malas estava vazio.

* * *

- Temos que dar o fora daqui - Cristiano falou, andando de um lado para o outro, desnorteado.

- Como?! Nesse carro? - Julia gritou, a voz esganiçada.

- Não, claro que não! Vamos procurar alguém, algum lugar, ou...

- Cris, não tem ninguém aqui! Estamos sozinhos, no meio do nada! - ela chorou, desesperada.

- Calma, Ju - ele a abraçou - Fica calma, vamos dar um jeito! Vamos procurar um lugar mais alto, algum lugar onde eu consiga fazer esse celular funcionar, e aí ligamos para a polícia, ou para o cara da locadora, sei lá...

Os dois tremiam e andavam juntos, dirigindo-se para o carro, para tirar de lá as mochilas que levavam, decididos a abandonar o Honda Civic ali mesmo. Antes de alcançarem a porta, o mesmo barulho - BAM!!!! - fez Julia soluçar alto de medo.

- Calma - Cristiano a abraçou forte, pedindo uma calma que ele também não tinha.

Naquele momento, as luzes do carro, que iluminavam a estrada deserta, se apagaram completamente, deixando o casal numa escuridão quase completa. A única luz vinha da lanterna, iluminando seus rostos e fazendo com que parecessem dois fantasmas.

Cristiano soltou Julia lentamente. Olhando para o rosto da menina, molhado de lágrimas, ele resolveu se mexer.

- Temos que dar o fora daqui - ele falou, iluminando o carro com a lanterna e pegando suas mochilas, o mais rápido que pôde. - Vamos!

Agarrou a mão de Julia e os dois saíram correndo pela estrada, o mais rápido que puderam, enquanto o carro lá atrás continuava soltando os estranhos barulhos, cada vez mais fortes e rápidos. Só diminuíram o passo quando já não podiam ouvir mais nada.

Cristiano e Julia ofegavam, tentando respirar depois da corrida, parados na beira da estrada. Um barulhinho baixo chamou a atenção dos dois, indicando que ali o celular voltara a receber sinal.

- Oh, graças a Deus - Julia choramingou.

- Vou ligar para o desgraçado da locadora - Cristiano disse, enquanto revirava a carteira, até encontrar o cartão do homem. - Aqui está.

Ele discou o número e esperou alguns momentos até que alguém atendesse. Para que Julia ouvisse a conversa, deixou ligado o viva voz.

- Alô? Por favor, preciso falar com o Alberto Peres.

- Com o Alberto? - uma voz de senhora respondeu. - Ai, meu rapaz, acho que não posso ajudá-lo...

- Por favor, é muito importante - ele falava, sem nem parar para respirar. - Aluguei hoje um carro com ele e estou com problemas, estou parado no meio da estrada e...

- Alugou um carro? Hoje?

- É, eu...

- Menino - a velha falou, tão confusa quanto ele - A locadora fechou há muito tempo. Meu querido Alberto faleceu há onze anos!

* * *

- Alô? Alô?

Cristiano e Julia se olhavam, com terror nos olhos. Lágrimas silenciosas voltaram a rolar pelo rosto da menina, enquanto a velha tentava, em vão, continuar a conversa do outro lado da linha.

Nenhum dos dois ousava mexer um músculo. Ao longe, o barulho do carro voltou a ser ouvido mais uma vez.

- Chame a polícia - Julia falou, sem soltar som algum, somente com os lábios.

Devagar, sem tirar os olhos dela, Cristiano discou o número da polícia. Ainda no viva voz, o silêncio da chamada aguardando ser completada pareceu durar séculos, enquanto um segundo barulho, vindo de longe, chegou aos seus ouvidos, agora um pouco mais alto.

- Oh, por favor... - Cristiano olhou para o celular, rezando para que a ligação se completasse ainda naquela década. Quando o aparelho finalmente emitiu algum som, não foi o que esperavam: um bipe indicou que o telefone estava fora da área de cobertura.

- Mas que diabos! - Cristiano gritou. - Como é possível? Acabei de usar essa porcaria!

Tentou ligar de novo para o número da velha senhora, mas o telefone novamente emitiu o bipe que indicava falta de sinal.

- Porcaria! - Cristiano jogou o celular no chão, espatifando-o. Naquele momento, outra vez o barulho, já bastante próximo, fez os dois gelarem de medo.

- Cris, o que está acontecendo?

BAM!!!!

Julia gritava, chorando, cada vez que o barulho, sempre mais próximo e frequente, voltava a assustar-lhe.

- Vamos embora daqui - ele agarrou sua mão, e os dois voltaram a correr, com a lanterna na mão.

- Onde nós estamos, Cris? Que maldito lugar é esse? Pra onde aquele homem nos mandou?

BAM!!!!!

De repente, Cristiano parou, escorregando e tentando segurar Julia para que não escorregasse também.

Na frente dos dois, a estrada acabava de repente, num precipício em que era impossível enxergar o fundo apenas com a luz da lanterna.

- Oh meu Deus! Cris, o que vamos fazer?

O barulho chegava cada vez mais perto. Julia continuava gritando, desesperada.

- SOCORRO!!! PELO AMOR DE DEUS, ALGUÉM NOS AJUDE!

- Ninguém vai nos ouvir - Cristiano falou, olhando em volta - precisamos sair dessa floresta. Tem alguma coisa errada aqui.

Nesse momento, a lanterna fez um "click" e apagou. Cristiano tentou, mas não conseguiu ligá-la novamente.

- Droga!

Agora eles estavam imersos na escuridão. A luz fraca da lua encoberta pelas nuvens só servia para que eles distinguissem as árvores da estrada, e a única coisa que eles sabiam é que não podiam seguir em frente por causa do precipício - só poderiam voltar em direção ao carro.

- Vamos. Precisamos correr. Me dê a sua mão!

Os dois partiram pela estrada, indo na direção do barulho, que agora era ininterrupto, como se alguém estivesse batendo desesperadamente no carro, tentando sair. No entanto, não havia ninguém lá. Com a pouca luz, em alguns minutos de corrida os dois puderam visualizar o carro mais à frente, mas a hesitação não fez com que parassem. No entanto, o coração deles quase parou quando, de repente, as luzes do carro se acenderam novamente. Os dois ficaram imóveis no mesmo momento, suando sem parar, mais pelo medo do que pela corrida.

- Mas o que...

De repente, o coração deles gelou. O motor do carro começou a funcionar.

O som da aceleração era nítido em meio ao silêncio, e em segundos o carro chegaria até eles.

- Vamos, por aqui!

- Não! Pelas árvores, não!

Mas Julia não teve escolha a não ser seguir Cristiano. Ele segurava forte sua mão, para não perder-se dela em meio às arvores completamente escuras. A luz da lua não penetrava no meio daquela mata densa, e eles seguiam o mais rápido que podiam, tomando cuidado para não tropeçarem nem baterem nas árvores. O medo era tamanho, que nenhum dos dois notou em que momento da corrida o som do motor do carro parou de ser ouvido - nenhum dos dois sequer olhou para trás para ver em que direção iam os faróis. No entanto, a batida medonha continuava, sempre próxima, como se os seguisse bem de perto.

O caminho era difícil, e os dois já estavam bastante machucados quando Cristiano soltou um grito e sua mão escapou da mão de Julia.

- Cris, onde você está? O que está acontecendo?

- AAAHHH!!!

Cristiano continuava gritando, um grito de dor e de pavor, e Julia tateava desesperadamente à sua volta, andava em direção aos gritos, mas não conseguia encontrá-lo e nem fazer com que respondesse aos seus chamados. De repente, os gritos pararam. No mesmo momento Julia parou também.

Ela ficou em silêncio por um momento.

- Cris? - arriscou, num sussurro. - Cris, você está aí? Você está bem? O que houve?

BAM!!!!!

O som veio mais alto do que nunca, bem nos ouvidos de Julia, quase matando-a de susto. Chorando, ela saiu correndo, sem direção, gritando pelo namorado.

- CRIS!!!! CRIS, PELO AMOR DE DEUS, ONDE VOCÊ ESTÁ???

Quanto mais ela corria, mais o barulho parecia próximo, como se alguém a seguisse muito de perto, e seria possível sentir seu hálito na sua nuca, caso esse alguém realmente existisse...

De repente, Julia tropeçou em alguma coisa e caiu. E quando percebeu o que havia acontecido, estava dentro d'água, num lago tão escuro quanto todo o resto daquele lugar.

- SOCORRO!!!

Ela gritava, enquanto tentava manter-se na superfície. Numa das vezes em que afundou, bebeu a água do lado, e pelo gosto teve a impressão de estar dentro de um pântano. Segurou a ânsia, porque outra questão muito mais pertinente apareceu na sua mente: por que estava afundando, se sabia nadar?

Julia tentou gritar por socorro novamente, mas sua boca encheu-se da água viscosa e mal cheirosa daquele pântano, e apesar de todo o seu esforço, foi levada para o fundo, um fundo que não chegava nunca, e o último som que ouviu antes de perder a consciência foi aquele do porta-malas, distorcido pela água que a circundava...

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