A tasca era frequentada por uma plêiade - ou súcia? - de
alguns intelectuais radicais, digamos assim. Tinha artistas plásticos,
atores, literatos, jornalistas, vereadores do paleio oco, chicaneiros e malandros
de todo jaez. Ah! Poetas e poetastros, também havia. A maioria era bizarra
e sem- vergonha, sem dúvida. Aquela turma era a nata delirante da boemia
da cidade degenerada, digamos assim.
Eram pessoas que procuravam escapar das garras da realidade prosaica, através
de goles e mais goles de cerveja gelada ou intermináveis conversas, fiadas
ou moles.
O mundo continuava mergulhado na mesma sordície de sempre. Do capitalismo
à globalização, o homem ainda idolatrava um deus chamado
lucro no altar da avareza. E a plutocracia ainda tinha como patrono o Cão.
Corria o miserável ano de 1999. Fim de século. Violência,
guerras, morte, destruição. E a praga do desemprego grassando
juntamente com a AIDS. Havia muito medo por toda parte. Alastrara-se. O medo
era como uma segunda epiderme nas pessoas.
O Brasil de 1999 era um pandemônio só, uma grande jaula em cujo
interior havia corruptos e inocentes aptos para a apoteose da canalhice da alma
ou para a imolação da bondade de coração. O Brasil
continuava o mesmo, assim como o mundo. Corrupção na política.
Miséria.
Muita gente pobre, pouca gente rica. Enfim, um país esquisito, infernal.
Eu vivia sonhando com o dia em que os extraterrestres me abduzissem e me levassem
daqui. Cansara-me deste planeta insano. Desejava não a morte, mas a vida
em um outro mundo mais razoável e interessante.
Os janotas maquiavélicos do governo tergiversavam, como sempre. Não
havia crise alguma, diziam os filhos do Mafarrico. Queriam era manter seus privilégios,
obviamente. O povo que se danasse, como sempre.
Greves? A polícia dava um jeito. Repressão! Salários mais
dignos? A polícia dava um jeito em tudo: Repressão! E quando a
polícia fazia greve? Aí, era um Deus nos acuda: os bandidos e
ladrões começavam a trabalhar livremente...
A verdade era cristalina e uma só, mas poucos queriam admiti-la: a violência,
o terror, o caos imperava nas cidades. Em bairros chiques, em bairros pobres,
nas favelas, na periferia. Guerrilhas urbanas de traficantes. Psicopatas esquartejando
garotas. O fim do mundo passando na TV. O noticiário da noite tinha virado
o filme de terror preferido de todos. Violência e morte ao vivo, via satélite.
O apocalipse em horário nobre.
Eu via um pavor discreto esculpido nos semblantes das pessoas. No fundo, acho
que todos queriam era ir para o céu, sem precisar atravessar os portais
da morte. Acho que todos desejavam a espiritualização da matéria,
a concretização do grande quiliasma antes mesmo do Juízo
Final.
Penso que a vida para nós, tolos mortais, talvez não passe de
um café amargo, um necessário purgante espiritual; a grande diarreia
que limparia tudo seria a morte, então.
Eu, Fausto Oliveira de Moraes, mais um brasileiro supérstite, também
sou habitué da tasca chamada "Homens da Taberna". Estou sentado
tranquilamente a uma mesinha, com um lápis na mão, uma borracha
encardida por grafite e uma folha de papel, esboçando uma hidra apavorante
prestes a atacar um guerreiro medieval de gládio afiado em riste, com
os dentes cerrados numa expressão de fúria incontida. Puro delírio
da fantasia.
O debuxo épico promete ser uma obra-prima.
Encontrava-se perto de mim uma atriz de teatro infantil. Seu nome? Rita Eutanásia.
O sobrenome, obviamente um pseudônimo, ela o adotara porque era partidária
da morte sem sofrimento. Havia um quê de punk em Eutanásia. No
entanto eu sabia que ela não passava de uma candongueira que me agradava
só porque eu tinha alguns bons caraminguás no bolso.
Agora, ali estava ela, bêbada. Cerveja demais. O álcool deixara
seu cérebro ainda mais alucinado do que já era.
Eu a ouvia com a mesma atenção de quem ouve um papagaio bêbado.
Rita Eutanásia falava a respeito da peça que pretendia encenar,
O Rapto dos Mortos-Vivos Marxistas. O texto era de sua autoria. Seria um sucesso
de público e crítica, acreditava.
O problema era que eu não conseguia me concentrar direito no desenho
com aquela insana tagarelando.
Juro! Se eu tivesse um revólver em minha mão, eu atiraria nela,
à queima-roupa. E enterraria seu cadáver num cemitério
de papagaios lobotomizados. Juro!
Procurei controlar minha neurastenia.
O ato de desenhar me faz esquecer de tudo, mormente esquecer a inópia
em que me encontrava. O que me consolava, no entanto, era que eu não
estava só no grande universo da pindaíba tupiniquim.
Todavia, com Rita vomitando sua conversa fútil perto de mim, ficava
quase impossível a concentração.
Tudo ia bem assim, quando, de chofre, aparece um guri - um mulatinho ligeiro
com jeito de engraxate ou menino de rua - feito uma ventania.
O guri pediu para ver o meu relógio de pulso, em sua mão.
Eu pensei em lhe dar uns petelecos. Dizer a ele para se mandar dali, mas, não
sei por que, confiei no guri. Os olhos do menino tinham uma espécie de
luz feminina, eu diria. Havia qualquer coisa andrógina e feérica
em seus olhos negros que me faziam lembrar toda a inocência e bonomia
de uma mucama do Brasil Colonial. (Para evitar maledicências, devo dizer
que não sou pedófilo, mas sempre segui o lema do tal Jesus: deixei
vir a mim as criancinhas, porque sei que é delas o reino dos céus,
isto é: as crianças são mais puras do que os adultos, não
têm tanta sujeira na mente, ou se as tem, são sujeiras criativas,
digamos assim).
O dono do bar, Seu Samuel, à sua maneira áspera, interveio:
- Ei, pivete! Pensas que o freguês é papai-noel para te dar presente?
Vá engraxar as botas de Judas!
- Não, não senhor, seu Samuel! O senhor não me entendeu!
Eu só quero ver o relógio do moço, aqui, na palma da minha
mão.
- Ah, mas que negrinho safado! Dá o fora, cabrito! - vociferou o dono
do bar.
Falei, então:
- Deixa, deixa, seu Samuel! O pirralho aí pensa que eu nasci ontem.
Deixa ver até aonde ele vai com essa história.
O dono do bar concordou, balançando a cabeça.
O negrinho então falou assim:
- Eu não seria tão pacóvio assim pra chegar aqui e pedir,
na caradura, o seu relógio e sair fugindo com ele.
Fico enternecido com o guri. De algum modo, sinto que o fedelho diz a verdade
e tem personalidade. Então:
- Olha aqui, quer saber de uma coisa? Fica com ele! - e retiro o relógio
do meu pulso, entregando ao garoto. - Essa porcaria é falsificada, mesmo.
Fica pra você. Presente antecipado do Papai-Noel. Não ligo pra
coisas materiais, tampouco para o correr do tempo.
O garoto falou:
- Bem, eu só queria olhar ele de perto, tocar nele. Mas, já que
o senhor insiste...
O garoto olha fascinado para o relógio agora na palma de sua mão.
E de repente, como um pé-de-vento, corre feliz da vida, serelepe, lampeiro
como ele só.
Rita Eutanásia continua, loquaz. Nem ouvira a conversa entre o guri
pretinho e eu.
De repente ela me indaga:
- Que horas são, Fausto?
- Não sei. Não tenho mais relógio. - E de repente sinto
que o tempo não mais existe pra mim, apesar de ainda estar preso em suas
teias. Vem-me a mente uma pintura de Salvador Dali, onde aparecem relógios
como que se derretendo. Persistência da Memória, o título
da obra.
- Deixa de brincadeira - falou ela, pegando minha mão e olhando para
o meu pulso.
Olhei para o meu pulso e o relógio continuava ali! Mas eu havia dado
o relógio para o neguinho! Seria um outro relógio?
Sim, olhando melhor, era um outro relógio. Um tipo de relógio
anacrônico, antigo.
Rita olhou-o melhor e disse:
- Ué, mas não tem ponteiros, este teu relógio?
De fato não havia ponteiros naquele relógio de pulso antigo.
Sem saber como explicar, disse idiotamente:
- Bem, é que o tempo, tal como nós o concebemos, simplesmente
não existe.
Rita Eutanásia riu como uma hiena.
Depois de uns minutos, ela levantou-se, dizendo-me:
- Depois dessa, vou até ao toalete.
- Precisa de ajuda? - perguntei, fazendo-me de tolo.
- Pascácio! - murmurou ela, rindo.
- Ora, é que você está ainda meio alta, não? - falei.
- Sei. Sempre disposto a fazer uma boa ação, não é
mesmo, seu beldroegas?
Ri também. Rita saía de cena, a calça jeans muito apertada,
realçado-lhe as ancas calipígias. Uma figura, ela.
Uma preta velha entra no bar. Vem em minha direção.Percebo que
lhe faltam dois dentes na frente. Estende-me um colar de miçangas coloridas.
A velhota, sorrindo para mim, fala-me solenemente:
- "Homo homini lupus!"
Latim? Uma preta velha falando latim?
Tentei não ser preconceituoso. Ora, por que diabos uma senhora de cor
não pode saber latim? Alguém lhe ensinara, certamente.
- Sei. Homem é lobo do próprio homem, não é?
Ela anuiu com a cabeça. Depois foi embora.
Presumi ser ela a mãe do tal negrinho de momentos atrás. Gente
esquisita. Pobre é assim mesmo. E novamente tentei pulverizar os meus
preconceitos, que teimavam em me perseguir como um enxame de pecados oriundo
do ego mundano.
Meditei sobre aquela frase. Homo homini lupus.
Aquela frase explicava, em parte, aquilo que eu filosoficamente chamava de
psicologia antropofágica dos seres humanos.
Sim, talvez o egoísmo, com todas as suas artimanhas, seja realmente
a força que tirou os homens das cavernas. Talvez, pensei, houvesse um
tipo hígido de egoísmo, um egoísmo são. Que coisa,
meu Deus!
Lembrei-me de Thomas Hobbes.
Tudo sucede, segundo leis naturais?
A realidade é apenas corpórea e o movimento explica as mudanças
na natureza?
A sensação é a origem de todo o conhecimento e dela derivam
as formas e a própria razão?
Em matéria de filosofia, meu favorito é Sartre.O homem é
um ser para a morte. Só existe autenticamente o que se escolhe livremente;
aquele que se faz por si mesmo; aquele que é sua própria obra.
Que mente, a de Sartre!
Bem, mas tudo, no final das contas, é loucura e sumo para o grande suco
cósmico batido no liquidificador do mundo. E verdadeiramente só
conseguimos ser livres para escolher entre a bem-aventurança de sermos
nós mesmos ou a infelicidade de sermos o que os outros querem que sejamos.
Olhei para o tal colar que a velha me dera, mas, por incrível que pareça,
o colar sumira! Desaparecera da palma da minha mão. Sumira como que por
encanto.
Apanho o copo para mais um gole de cerveja.
Pelas barbas de Satã! Parece que a cerveja mudou de cor! Agora é
verde!
Olhando melhor, percebo que a cerveja não se tornara verde, não.
Fora o copo que tinha se tornado verde. E isso acontecera ao tocá-lo!
O copo tornara-se verde ao meu toque, o meu toque mágico! Que loucura
era essa?
Ponho-me a exibir aos outros e a mim próprio o estranho dom que a mim
fora concedido. O dom de mudar as cores dos objetos, da matéria, enfim.
Coloco o dedo indicador na camisa de um conhecido meu, que por acaso ia chegando
ao botequim. Sua camisa, ao meu toque, de branca passa a ser rubra, instantaneamente,
magicamente.
Um negrão parrudo, aproximando-se de mim, murmurou:
- Escutem uma coisa: não aguento mais o preconceito contra a minha
pessoa, sabe? Não consigo mais encontrar um maldito emprego nesta maldita
cidade. Acho que é porque sou negro, sabem? E, além disso, já
passei dos quarenta.
- Que nada! Tem muito branco por aí, sem trabalho, meu amigo! - respondi,
para dar-lhe ânimo. - O desemprego não escolhe cor de pele, nem
idade.
O negrão continuou:
- Olha, o negócio é o seguinte: estive pensando cá comigo,
meu chapa: estive te observando. Tu és mágico, não é?
E dos bons, pelo que vi. Vou ser direto: tu podias resolver o meu problema.
Muda a cor da minha pele, gente fina. Sendo branco, o problema diminuiria um
pouco, penso eu. Sendo branco, a coisa não ficaria tão preta.
Eu, branquinho, já pensou? Ajudaria bastante. Claro, me tirar da merda,
do dia pra noite, não ia, mas que ajudaria, ajudaria, sim senhor.
- Mas você não se orgulha de ser negro, ué? - perguntei,
mais para provocá-lo intelectualmente, digamos assim. - Não tem
orgulho de sua própria raça?
- Não! Ter, eu tenho. Só que o orgulho acaba quando a fome chega.
O problema é circunstancial, compreende?
Fiquei pensando alguns instantes. Então decidi:
- Pois olhe, eu vou atender ao teu pedido. Não sou o gênio da
lâmpada, mas vou atender ao teu rogo.
Toquei-lhe o antebraço. O negrão, num passe de mágica,
ficou com a pele branquinha, branquinha. Ficou parecendo um sueco.
Aproveitando o embalo, mudei-lhe a cor dos cabelos dele: de pixaim passou pra
loiro. Tudo magicamente cumpre dizer.
O ex-negrão vai para a rua.
Faceiro, espelhou-se no retrovisor de um carro estacionado defronte ao boteco.
Vejo tudo lá de dentro do botequim.
Ouvi ele dizer para si mesmo:
- É isso aí! Agora, sim! Os negros são uns merdas, não
prestam mesmo. São vadios e mentirosos. Só servem para servir.
Pensei com meus botões: acho que não lhe mudei apenas a cor de
sua pele. Mudei-lhe também a cor de sua mentalidade. Ou não mudara
nada, exceto a cor de sua pele? O preconceito parece estar na mente de todos,
não importa a cor.
Continuei ouvindo-o:
- Agora eu estou por cima, ouviram, seus negros filhos da mãe? Morte
aos negros! E também aos cafuzos e aos mamelucos!
Em frente ao botequim, havia um prédio em construção.
Vários operários nele trabalhavam. E ouviram tudo. E pararam de
trabalhar. E foram para cima do ex-negrão. Pensei comigo: a coisa vai
esquentar.
- Que tu tava dizendo aí, branquela? - indagou um negro forte e musculoso,
segurando o ex-negrão pelo pescoço.
Os pedreiros e serventes, negros e nordestinos, encheram-no de porradas. Não
ouve tempo para nada.
Logo, os operários voltaram ao serviço, deixando o ex-negro caído
ao chão, estatelado, mas ainda vivo.
Que lição tirei disso? Bem, não se deve ajudar quem não
merece ajuda. Ou: não importa a cor da pele ou posição
social. O preconceito nasce da necessidade doentia que a maior parte dos seres
humanos tem de se mostrar superior a tudo e a todos, isto é, de se vangloriar.
O ego ainda é o pior defeito dos homens. O ego inferior, se é
que me entendem.
Rita Eutanásia já tinha voltado, e a tudo observara.
Repleta de emoção, disse-me bastante fascinada:
- Digo que é o poder espiritual manifestando-se em você, ou melhor,
através de você, meu amigo!
Comecei a ficar um pouco assustado com aquele papo de maluco.
Ela continuou:
- Sim, meu amigo...outrora, em tempos imemoriais, quando o ser humano ainda
tinha a luz da inocência na mente, tal tipo de poder era a coisa mais
natural do mundo. Todavia, pouco a pouco o homem foi se degenerando, as sombras
do egoísmo desenfreado foi enegrecendo sua mente e seu coração,
e então ele quis ser também um deus, recusando-se ao projeto divino,
vivendo na heresia da separatividade...
Enquanto medito sobre as palavras de Rita Eutanásia, um jovem que está
sentado sozinho no canto do bar ergue-se repentinamente, com o nariz sangrando
copiosamente. Era um sangramento que ocorrera de súbito no sujeito.
Rita olha para mim e depois para o rapaz. Então ela volta-se para mim,
dizendo:
- É uma chance pra você transmutar esse seu poder inútil
em útil. Garanto que você pode ajudar o sujeito, ali. Tente, vamos!
O pior que pode acontecer é o sangue dele mudar de cor.
Tentei. E estanquei o sangue do nariz do cara. E pasmei.
Rita, dada a frívolas práticas mediúnicas, que para mim
sempre foram uma espécie de passatempo, concentrou-se, o rosto crispando-se
numa exótica careta. Logo falou, em tom solene, circunspecto, num transe:
- É do Cama-Loca, do Cama-Loca, um purgatório, para a terra,
esse outro mundo de provas...
Os olhos de Rita Eutanásia abriram-se vagarosamente. Cintilavam estranhamente.
Pareciam os olhos de uma pessoa que tivesse galgado as colinas da loucura. O
suor escorria por seu rosto contorcido num esgar sisudo e esquisito em verdadeiras
catadupas.
A voz dela agora era mais gutural, mais assustadora que o gemer de uma alma
queimando num caldeirão do inferno.
Era tudo tão incrível que eu pensei que estava sonhando com tudo
aquilo. Mas aí lembrei de que a realidade é muito mais fantástica
do que a ficção. Ah, isso é!
A estranha voz dizia:
- Amo, há quantos ciclos não tenho o prazer inenarrável
de conversar contigo...
Rita tocava-me.
- Doidivanas - murmurei -, eis o que você é, Rita...
- Não sou Rita...
- Ah, é? É quem, então?
- Sua escrava.
- Não comece a delirar. Olha que o delírio é o portão
de entrada para os exóticos jardins da loucura, hein! - falei.
- O desencarne foi rápido, eu não senti quase nada...Foi como
se eu tivesse aberto uma porta...
Estava quase começando a acreditar na coisa, mas não queria dar
o braço a torcer.
- Vai, continua.
-Poderemos ficar juntos, nesta encarnação, pelo menos por alguns
instantes, instantes esses que serão como eternidades. Em breve, muito
breve, seus anseios serão concretizados, amo. Para glória de nosso
Mestre maior!
- Não estou entendendo...
- O Grande Mestre! Não lembra? Foi ele quem lhe conferiu os seus poderes
na terra. Através de seus servos, ele lhe despertou novamente os poderes,
obscurecidos pela sua consciência adormecida. O Grande Mestre não
nos abandona, não é mesmo, amo?...
- Se você está se referindo a Jesus...olha, esse negócio
de religião, pra mim, tem um quê de loucura. De fanatismo. O meu
deus é a dúvida. No entanto não deixo de reconhecer o valor
cultural das religiões, pelo menos das mais sérias. Enquanto o
homem duvidar, estará vivo, evoluindo, esperançoso. O que eu quero
dizer, nas entrelinhas, é que o homem é um anjo para com os anjos
e um demônio para com os demônios, na maioria das vezes.
- Oh, ledo engano, amo. Esqueceu? O homem deve se submeter aos desígnios
do ego, que é nosso deus. Arimã, Mefistófeles, o Satã
da lenda bíblica, o Príncipe deste Mundo!
Nesse ponto, minha cabeça já estava bem confusa. O meu intelecto
era medíocre demais para se aprofundar em considerações
e truísmos filosóficos.
Rita Eutanásia continuava como instrumento do tal espírito. Um
microfone vivo a serviço de um ser há muito desencarnado.
- Procure lembrar de suas vidas passadas, suas existências anteriores.
Numa de suas muitas encarnações, o senhor foi um feiticeiro, um
mago negro, versado em artes místicas. Foi na antiga Lemúria,
lembra? O senhor fez um pacto. Queria conquistar os reinos que floresciam, erguer
um império. Queria ser o soberano de tudo e todos, porque acreditava
que o mundo do futuro seria muito mais vulnerável aos seus anseios de
ser um semideus! O demônio quer cobrar, agora!
- Que loucura é essa, afinal? - gritei, irritado.
Houve uma pausa sepulcral.
Dos lábios de Rita só saía o ruído de sua respiração
ofegante.
Sempre tive medo de enlouquecer. A loucura pode ser pior que a morte. Ninguém
pode imaginar a sensação que tive em seguida.
Comecei a lembrar de coisas. Coisas terríveis. Era a persistência
da memória agindo em minha mente. Coisas que talvez não devessem
ser lembradas. Coisas de uma outra vida, uma vida vivida em outro tempo, em
outra época.
Eu fizera um pacto terrível. E a cobrança do pacto tinha chegado
naquele dia, naquele botequim, naquela encarnação. E eu sabia
que o salário do pecado não era a morte, mas algo pior.
* * *
E aqui estou, então.
Um de meus sobrinhos, sentado bem ao meu lado, fala, incrédulo:
- Ora, tio Fausto, é uma história incrível demais. Não
foi à toa que o senhor veio parar aqui. É uma história
incrível e bizarra demais. Olha, depois dessa, só me resta ir
embora. Mas não se aflija. Volto no mês que vem. Sempre gostei
do senhor. Não sei porque. Quem sabe, numa encarnação passada
eu tenha sido seu... seu escravo, por exemplo. Bem, até a próxima!
Os dois sorriram.
- Claro, claro. Volte sempre, sobrinho. A casa é sua. E sempre terei
uma boa história pra contar.
- Grande mentiroso, hein, tio?
Rimos.
Depois de um abraço afetuoso, o sobrinho se foi. Obviamente ele só
voltaria no ano que vem, se sobrasse tempo. Era um mentiroso, também.
Um jovem e astuto vereador, eleito a custa de muitas promessas, muitas mentiras.
Isto equivalia a dizer: um embusteiro a mais no lamaçal da política.
Eu não estranharia se ele só aparecesse numa encarnação
futura para falar comigo.
Eu não me espantaria se não viesse nunca mais.
Agora ali estava eu. Sozinho. Sozinho outra vez, na minha noite espiritual.
Sozinho com minha loucura. Completa e irremediavelmente insano.
Pelo pátio da grande clínica psiquiátrica, só uns
poucos pacientes. Era hora do banho de sol ou coisa parecida.
E atravessei aquele dia como quem atravessa um deserto de tédio e monotonia.
Logo a noite chegou, apunhalando o dia com sua adaga de trevas.
A morte do dia foi recompensada por um céu cravejado de estrelas, que
eram como diamantes sobre um grande veludo azul-escuro. O diamante mais fino
era a lua. O dia morrera, mas não haveria nem choro, nem velório,
nem enterro. Para que tanta tristeza? Na manhã seguinte, o dia renasceria
para mais uma vez espargir sua luz, no ciclo interminável da loucura
da vida. É sempre assim: as coisas vêm e voltam, vêm e voltam,
num eterno retorno. A serpente mordendo a própria cauda...
Logo uma enfermeira corpulenta chegou. Parecia um sargento de saia. E tinha
um quase imperceptível bigode.
Chegou e me entregou um copinho branco, de plástico, destes descartáveis,
com água dentro. Também me entregou um punhado de pílulas
e comprimidos das mais variadas cores.
Ela falou, num tom severo, áspero, típico das pessoas que não
gostam do trabalho que fazem, que trabalham só pelo salário.
- Pegue e engula toda essa droga, como tem feito ao longo desses últimos
anos. Tenho que atender um telefonema urgente. É meu pai; parece que
foi atropelado por um motoqueiro bêbado.
- Claro, claro!
Ela se foi.
Com o copinho numa das mãos e os medicamentos na outra, comecei a assoviar
uma velha canção.
Enfiei os comprimidos e pílulas num dos ouvidos e, depois, derramei
o copo com água na orelha, transformando-a em boca. Estalando os lábios,
falei para com meus botões:
- Que delícia! Um manjar dos deuses! E ri bem baixinho, sacudindo a
cabeça, um tanto divertido.
Se eu morrer amanhã, não vou nem ligar. Morrer seria uma dádiva,
agora que sei que o salário que recebi por meus pecados foi uma negra
carga de loucura. Morrer seria a minha diarreia final. E, além
disso, nem preciso me preocupar muito; sou apenas mais um que enlouqueceu neste
vasto mundo insano, e a vida,às vezes, é como uma piada, uma piada
de mau gosto, sem graça alguma, porque termina com a morte. No final,
talvez só os deuses achem alguma graça. Os deuses antigos da Terra.
(Escrito originalmente para o site Garganta da Serpente em 12/5/2009)