"Agora estou amaldiçoado, horroriza-me a pátria. O melhor
é um sono, completamente bêbado, na praia".
Rimbaud
(Este é para Juninho, um sobrinho e um agente lôbrego de pequenas rebeliões interiores)
Quando minhas lágrimas secaram e meu pranto pungente transformou-se
num duro e seco ranger de dentes, e a estúpida e imbecil Morte, como
um invisível e ridículo esqueleto sarcástico, anunciava
o caos que antecede a queda dos cometas humanos no precipício vertiginoso
do nada; quando o torpe e enlouquecido mundo e as corrompidas e levianas pessoas
se tornaram criaturas tão mesquinhas e sórdidas a ponto de me
fazerem desesperar ante todos os meus sonhos abortados, e me conduzirem irremediavelmente
a uma loucura solitária e feroz; quando a vida se tornou um limbo de
tédio insuportável e monotonia degradante, pesando e amassando
meu espírito, e o asco total pelas coisas mundanas da triste e sórdida
realidade material me levou a uma encruzilhada e crucial e terrível,
onde eu só poderia escolher fatalmente entre os mistérios além
do torpe mundo físico e o exílio na jaula da carne e de minha
solidão atroz; quando a rotina miserável, detestável e
delirante dos dias lúgubres de uma vida insípida enxovalhou minhas
últimas esperanças e se tornou tão insuportável
e deplorável a ponto de fazer-me delirar terrivelmente em vórtices
agonizantes de pura luz negra, aquela que jaz nos abismos infinitos da loucura,
e ao mesmo tempo despertar em mim uma nova e mais perigosa consciência;
quando ninguém me compreendia, e eu sentia a viva necessidade de morrer
para só assim poder viver; quando a insensatez selvagem do chamado mundo
moderno me fez calar o canto de todos os meus sonhos mais livres e cândidos,
houve um momento mágico e derradeiro em que resolvi atirar-me de corpo
e alma a um sentido de vida esotérico, mágico e poético,
que só a mim poderia ser compreendido e fazer sentido, mesmo ante a galhofa
e zombaria dos parvos e imbecis de minha época insana.
Então, ali, sozinho e soturno e praticamente abandonado em meu quarto,
naquela noite quente e abafadiça do verão do ano de 1998, abri
a janela e deixei a brisa refrescante afagar-me o rosto porejado de suor como
se fosse a carícia de uma amiga fantasma. Arrastei o pequeno telescópio
para perto de mim, posicionando-o em direção às estrelas
ardentes e distantes que reluziam como mundos inatingíveis e perdidos
no infinito insondável da galáxia. O céu estrelado e sua
imensidão assustadora me deram a sensação de ser eu um
mero verme no lodo da terra.
Na solidão de meu quarto eu perdera o sono; já passara da meia-noite
e o sono não viera, nem com ele a dádiva maravilhosa dos sonhos.
Lembro que na noite anterior eu havia lido as terríveis páginas
de um velho alfarrábio, um certo livro antigo, misterioso e assustador
contendo conhecimentos esotéricos proibidos de eras perdidas nas sombras
imemoriais do tempo e dos "mahavântaras", um certo tratado
inaudito de magia negra que um velho marinheiro português me havia dado
de presente. Acordara assustado em altas horas, após passar o dia todo
lendo e estudando o dito livro de conhecimentos fantásticos, obra mística
traduzida do sânscrito. Tratava-se, com efeito, de um grosso e antigo
volume. "As Chaves Proibidas dos Mundos Ocultos", era o título
da obra maldita de Ciências Esotéricas. O autor era um certo yogue
e ermitão do sul da Índia, chamado Camaysar Audremalon, e o tradutor
da obra, um ocultista inglês de renome, também aventureiro, poliglota
e professor de arqueologia, de nome John Edward Blackstone, nascido no interior
da Inglaterra, que se suicidou no ano de 1965.
Lembro também a ideia de embriagar-me com um garrafão
de vinho barato, uma zurrapa que um velho e único amigo deixara-me como
consolo para meu infortúnio, e depois sair para caminhar na praia, já
que minha casa ficava por ali perto. Lembro também da amarga nostalgia
de minha terra natal...
Puxei a cadeira da escrivaninha e sentei-me ali, perto da janela, lembrando
de tudo o que eu havia lido na noite anterior, e olhando sonhadoramente as estrelas
maravilhosas no céu noturno da estranha e antiga cidade de Verdes Montecillos,
uma cidadezinha numa região da Espanha conhecida como Costa Brava, a
cidade onde eu morava desde que fugi da América do Sul, mais precisamente
do escalafobético Brasil, meu torrão natal. Em meu exílio,
refleti sobre a infinita série de mundos que por certo haveria nas galáxias
perdidas na imensidão do infinito sideral ou aqui mesmo, nas dimensões
que se interpenetram.
Então, de uma forma inexplicável eu sentia emanações
cósmicas da fantástica Nebulosa de Órion, proporcionando-me
estados mentais ou "conscienciais" que não consigo entender
e nem explicar no presente momento, mas que por certo o prosaico, catacego e
estúpido pensamento humano comum considera como simples loucura.
Passei a olhar com maior assombro para a grandiosidade infinita do Cosmo, com
seus mistérios extraordinários, com seus segredos siderais innefáveis,
e levando-me a certeza de que nós, lunáticos homens da humanidade
terrestre, nada somos a não ser ínfimos grãos de areia
ante a majestade do grande oceano de astros que é o Universo eterno e
portentoso. Também cogitei acerca da teoria de que é uma falácia
a chegada do homem a lua; eu acreditava, porque na lua só chegam os poetas
e os loucos, com seus corpos de sonhos e rosas.
Perto de Aldebaran, pude constatar, com meu pequeno telescópio preso
ao tripé, que rutilava uma pequena estrela na qual fixei meus olhos com
demasiada atenção. Tal estrela proporcionou-me algo como um febril
estado alterado de consciência ou coisa parecida. E, de algum modo, me
fez sentir sobre a verdade acerca dos incontáveis mundos no universo
e das dimensões superiores da natureza, dos mundos embutidos uns nos
outros, aqui mesmo, no velho mundo que chamam Terra.
Eu a fitava, a estrela estranha e sinistra cintilando nas trevas diabólicas
da noite, quase hipnotizado ante seu brilho misterioso e assustador, como um
náufrago olharia uma tábua de salvação ante um mar
revolto em terrível procela. Havia tempos que a insônia me consumia
como um veneno lento e de efeitos paranóicos. O tédio da existência
mundana da torpe vigília me consumia como uma peçonha maldita,
subjugando-me loucamente em ascos e repugnâncias de desejos mórbidos
de morte, violência e extinção perpétuas, num lôbrego
fosso de torturas mentais e espirituais ao mesmo tempo estranhamente terríveis,
translumbrantes e extasiantes. Ninguém, ninguém notaria a morte
de um homem solitário e obscuro como eu, um homem que sonha e lê
muito, um homem sem fortuna e sem amor, um celibatário involuntário,
quase sempre debruçado na janela de seu miserável quarto, numa
cidadezinha antiga e degenerada da velha Europa. Sim, neste pobre mundo, um
mundo onde tudo é pago com vil metal, até mesmo o túmulo.
Ninguém, ninguém mesmo notaria o infortúnio e a morte silenciosa
de um solitário sonhador, um sonhador que raramente dorme, mas que sonha
em sonhos que nunca ninguém jamais sonhou. Ninguém notaria o último
delírio de um poeta sem poesia, o derradeiro delírio de um desesperado
do tédio... Ninguém notaria um cadáver putrefazendo-se
solitariamente num quarto fechado, devorado languidamente pelas legiões
dos vermes, longe do horror dos dias tediosos de sua pátria e da civilização
assim chamada moderna.
Ninguém notaria a minha morte, eu pensava. Quem se importaria com um
derrotado do cotidiano, um peregrino espiritual vagando de mundo em mundo, sem
religião, sem domínios, um vate sem profecias? Sim, eu disse há
pouco "de mundo em mundo", porque o mundo da vigília a mim
sempre me pareceu mais esdrúxulo e insano que o mais bizarro pesadelo
de um condenado ao inferno. O mundo da vigília é uma mentira e
uma loucura institucionalizada. No mundo da vigília, todos somos sonâmbulos.
A cidade sob as estrelas, a cidade que me acolhera desde que fui escorraçado
pela falta de perspectivas e esperanças na confusa América do
Sul, a cidade, aquela cidade do litoral me consumia, me consumia em dor, em
tédio, em tédio e medo. A cidade, aquela cidade estranha e maldita,
com seus prédios em silhuetas escuras como ogros noturnos , com suas
casas antigas cheirando a magia negra, as poucas luzes acesas, seus moradores
degenerados e sempre sedentos por orgias e bacanais, a cidade parecia dormir
em sordidez e degenerescência, embalada pelo canto das ondas do mar ao
qual ficava rente. Agora a maioria dos filhos da cidade de Verdes Montecillos
dormia; eles dormiam e sonhavam, mas seus sonhos eram estilhaços de pesadelos
prosaicos, esdrúxulos, um mosaico de sonhos negros similares aos dos
moribundos no afã da libertação da morte.
Eu continuava olhando melancolicamente a estrela aziaga que de um modo errôneo
- pelo menos era o que eu achava - estava próxima demais à rubra
Aldebaran. E assim permanecia, sombrio e pensativo, talvez um tanto equivocado
em meus anseios, equivocado em minhas ideias e idiossincrasias.
De minha janela eu posso ver toda a beleza e grandiosidade do mar. Ah, o mar!...O
mar, o imemorial e misterioso mar, o mar com seu feitiço demoníaco,
o mar que abraça com suas ondas a cidade costeira, num amplexo langoroso
e sensual. Ele estava plácido, quase sem ondas, o mar, o arcaico e enigmático
mar. Em sua superfície azulada refletia-se o brilho das estrelas e da
lua cheia, especialmente vermelha na noite quente e abafadiça, e também
estranhamente me angustiava o mágico brilho daquela estrela que eu fitava
como o olho de um deus antigo e perdido em sua solidão sempiterna. Fiquei
assim até altas horas, até que finalmente caí num sono
estranho, e nesse sono eu me precipitei num torvelinho ou vórtice etéreo,
que se transformava paulatinamente num tornado elétrico espiritual ou
transcendental, por demais místico, mágico, selvagem. Houve vertigens
espirituais incandescentes, etéreos desfalecimentos, inconsciência
plena e pura, e um novo, um novo despertar, um despertar estranho e aterrador
como o despertar de um morto no plano astral.
Chegaram em minha mente inefáveis fluxos de partículas da fantasia
de mundos ultracósmicos!
Quando dei por mim, eu havia atravessado os portões místicos
além do sono e dos sonhos, além do grau de consciência que
alguns estúpidos chamam loucura, arrastando-me como um mendigo espiritual
errante, e sentindo que meu nome já não era mais um nome comum,
de um cidadão acanhado e tíbio de Montecillos, encarcerado em
sua solidão urbana. Não, agora eu tinha um outro nome, o nome
de um rei-guerreiro versado nas artes místicas... Dy Gurarglanes! Dy
Gurarglanes, o guerreiro místico e espiritual, o espadachim, também
mago errante em suas batalhas esotéricas. Dy Gurarglanes, educado nos
intervalos das encarnações por severos ascetas das cavernas nas
montanhas sagradas de Shellaygth, a cidade além dos sono e dos sonhos
.Viera da cidade-estado de Zarglos, na extraordinária e legendária
ilha chamada Nontrabada, agora submergida na quarta dimensão, em perfeito
estado de jinas.
Agora eu me encontrava num estranho bosque de Nontrabada, coberto por uma tênue
bruma azul. Minha indumentária não era mais a de um cidadão
comum da Terra. Eu estava vestido com uma estranha túnica azul, e tinha,
embainhada no cinturão de couro cru que me cingia, uma formidável
e reluzente espada com o cabo ou empunhadura em forma de serpente.
Montado em meu unicórnio branco, eu trotava pela trilha enevoada, em
busca do sagrado templo da deusa do fogo, bem como do misterioso Rubi Negro.
A pedra preciosa e a deusa que libertariam "Abrustidonis", a substância
sagrada invisível e flamígera do meu próprio Agni (alma)
roubada pelo terrível mago negro Egonius, a substância sagrada
que eu concederia como uma mostra da potência de meu espírito à
ígnea Deusa Mater Iz, o princípio feminino e eterno do deus Gluyur,
para somente assim começar o ritual de iniciação nos mistérios
maiores do esoterismo iniciático, para a formação total
da classe dos magos brancos chamados Andarilhos do Fogo Eterno.
Eu sabia de tudo isso, tinha noção de tudo. Eu sabia, eu sabia
de minha senda, a Senda do Fio da Espada. Tinha noção de
minha busca pela espada flamejante e a conquista de meu reino interior, através
de batalhas interiores e exteriores. Já não era mais o meu eu
terreno, mas um outro eu, uma parcela superior do meu Real Ser, talvez. Eu ainda
estaria na Terra? Ou meu espírito viajara até aquele mundo estranho
de uma realidade fantástica, inacessível para a maioria dos profanos
da tão cacarejada civilização terrena? Ou seria uma lembrança-sonho
de uma existência pretérita num mundo longínquo e bárbaro,
perdido entre estrelas funestas flutuantes? Ou uma jornada além da loucura
e dos sonhos mais insanos, nos mundos internos?...Eram cogitações
e mais cogitações, hipóteses sombrias nas sombras da noite
velada e da consciência aparentemente adormecida...do ponto de vista físico,
digamos assim.
Eu estava também à procura de Haulus, meu mui dileto amigo, capturado
pelos monges canibais, os terríveis Surgs, párias e energúmenos
da Irmandade do Averno. Os Surgs, verdadeiros cães de caça do
terrível mago Egonius. Eu sabia, eu sabia que eles iriam torturar meu
pobre amigo Haulus. As torturas seriam aterrorizantes, é claro. Mas graças
aos anéis da Irmandade Branca, eu o encontraria, através de vibrações
etéricas. Meu anel recebia as vibrações do anel similar
no dedo de Haulus. Os anéis com as esmeraldas engastadas...símbolo
perfeito do poder mágico das gerações dos adeptos e dos
iniciados... E minhas aventuras espirituais estavam apenas em seus primórdios,
em Nontrabada, a ilha mística além do sono e dos sonhos, num vasto
reino de abismos que alguns ignorantes ilustrados bem poderiam chamar...Loucura.
No mundo dos homens e do medo, ninguém notaria o cadáver putrefato
de um bêbado e celibatário poeta, o corpo de um sonhador suicida
boiando poeticamente na beira da praia, nas sombras longas, movediças
e vermelhas de um crepúsculo violáceo e melancólico, ao
som das orquestras sinfônicas lúgubres do vento e das ondas morrendo
solitárias nas areias e rochedos.