Você não acerta repor o fone no local certo. Treme, sente falta
de fôlego, dor no peito, cegueira, tonteira, suadeira, rijeza, moleza,
gastura, friúra, quentura, baticum no coração, formigação,
desesperação... Pânico. Aquilo não é mais
um quarto de dormir. É uma morgue, em seguida, uma sala de depoimentos
policiais, uma cela, um calabouço, um cadafalso. Depois é uma
sala de aulas, um jardim da infância, uma creche, os aposentos da sua
mãe, um berço... Um útero. Você estava de plantão
há trinta e seis horas: vinte e quatro para cumprir o estágio
obrigatório na maternidade e doze no Pronto Socorro, para tentar sobreviver
ganhando uns trocados a mais. Portanto, muito cansado, com sono e mal alimentado.
Seu último ato foi encaminhar ao IML o cadáver de uma criança
vítima de atropelamento.
Doutor, é do Instituto Médico Legal, aqui quem fala é o
auxiliar de necrópsias. Seu colega legista não passa bem e pediu-me
para lhe avisar... Se prepare, pois a notícia não é nada
boa: o menino enviado pra cá pelo senhor está vivo. O doutor já
ia começando a fazer o talho da autópsia quando...
Você não quis escutar o resto. Poucos minutos mais tarde a crise
de pânico se transformou num profundo abatimento... Quase desmoronamento.
Sua única esperança é que aquilo não tenha sido
real, e sim um pesadelo. Você se apalpa, anda pelo quarto, lava o rosto
com água gelada, se vê no espelho, arregala bem os olhos e percebe
o fone pendurado, pendulando, balançando feito um enforcado. Logo, muda
de ideia: talvez se trate de um trote... É isso, um trote. Não
pode ser verdade... Você tem certeza: a criança estava morta. Não
escutou coração, comprovou a ausência de movimentos e ruídos
respiratórios, constatou a inexistência de reflexos pupilares,
fez massagens cardíacas, respiração boca a boca, examinou
novamente... É isto: um trote. Uma brincadeira de mau gosto ou um gosto
de maldade sem nenhuma brincadeira. Quem sabe, alguém o odeia, seja lá
qual for o motivo, e você não sabe...
Como um desvalido da sorte, se vale de um desvalium qualquer retirado de dentro
da maleta. Se acalma um pouco mais. E pensa. Você só tem vinte
e cinco anos. Há apenas quinze ou vinte minutos, havia um futuro de glórias,
multidões de esperanças, pencas de sonhos. E somente dois dedos
de desilusão. Todos os preparativos para os festejos da colação
de grau já estão programados. Missas solenes, a cerimônia,
o baile. A semana inteirinha, que precede o Natal, de comemorações.
Você não comprou o anel, porque a noiva rica deu de presente, mas
o terno decente que nunca possuiu, foi comprado em dez prestações,
sem entrada. Você veio de baixo, muito debaixo. Passou fome, dormiu no
chão, foi humilhado, desacreditado, tratado como um cão. Pensa,
pensa, pensa. E calado, pergunta: por que comigo, meu Deus? Se eu tivesse saído
exatamente na hora, como costumava fazer, e não seis minutos depois,
estaria livre. Livre. Por que estes trezentos e sessenta segundos fizeram tanta
diferença na minha vida? Por que não aconteceu com o plantonista
seguinte? Um cara rico, com pais influentes, primo governador, tios políticos,
senadores, deputados... Você quer acreditar ser possível o tempo
voltar atrás. Tem de poder voltar atrás. No entanto, sabe que
não pode. Triiiiiiiiiiimmmmmmm: foi como uma martelada no meio da testa.
Doutor, aqui é (do Inferno) do Pronto Socorro. Venha urgente.
O diretor quer falar com o senhor...
Você não tem ânimo, nem motivação, nem coragem
pra nada. Não sabe como agir. Com quem contar. Procura, e não
acha, uma pessoa a quem telefonar. Pedir ajuda, socorro, para lhe acompanhar
ao Pronto Socorro. Pensa nos nomes de vários colegas. Nenhum é
confiável. A princípio, todos farão questão de ajudar,
prestar solidariedade, vestirem-se de samaritanos, aparecerem de cirineus, para
a televisão, para a imprensa... Para a mídia. A concorrência
feroz não permite rasgos de generosidade. De autêntica caridade
franciscana. No íntimo estarão gozando, telefonando uns para os
outros, espalhando aos quatro, aos cinco, aos milhões de ventos, a sua
desgraça. Uma peça a menos no tabuleiro de xadrez. Xadrez. Xadrez.
Xadrez. Conversam baixinho. Apenas entre eles. Não têm coragem
de admitir que estão felizes, sequer para si próprios. Não
acreditam que isso seja possível acontecer. Imaginem! Nós, os
Príncipes, filhos de Asclépio, irmãos de Hígia e
de Panaceia, sermos capazes de tamanha mesquinharia! A consciência
repugna a ideia. Trata-se de um processo subconsciente, quase inconsciente.
Logo mais todos os jornais do país darão em manchete, senão
os da Terra inteira, a televisão em edição extra, se escutares
me avisa... na verdade, cara, estou telefonando porque é nosso colega,
e se encontra numa situação crítica, talvez irreversível,
talvez, não: irreversível, irreversibilíssima, precisa
da nossa ajuda, ah, então já sabias? e agora? está liquidado,
coitado, não tem mais futuro como médico... nem como aplicador
de injeções será confiável, talvez nem como nada,
será sempre aquele doutor que mandou uma pessoa viva para o necrotério,
na verdade estou com uma pena enorme, também não é pra
menos, vamos ampará-lo, somos colegas, somos amigos, acima de tudo, somos
cristãos. Cristãos. Cristo. Oh meu Deus, não, não
é possível, não pode ser verdade...
Afinal, você se lembra daquele tio que não vê desde quando
passou no vestibular. Não por sua vontade, claro. Mas por imposição
daquela vida agitada. Dos estudos. Das noites em claro. Da puta lutalabuta.
Ou pelo menos assim você racionaliza. Como vou encontrar o telefone dele?
Deve estar no catálogo. Este aqui é só de endereços,
não sei mais onde mora. Não lembro sequer o nome da rua, deve
ter se mudado. Telefonista, podia me dar o número... Alô, tio?
Aconteceu uma tragédia. Me ajude pelo amor de Deus... Não se trata
disso, não fui acidentado... Não, não matei ninguém,
ou pelo menos ainda não, espero... Estou tentando ter calma, escute bem,
seguinte...
Você se aproxima do hospital. De longe já pode perceber: tem gente
trepada até nas marquises. Refletores, câmeras, unidades móveis
dos principais jornais, das estações de tv, várias viaturas
da polícia: uma delas um camburão. Um rabecão. Não
tem como encontrar o tio no meio daquela multidão. O local onde marcaram
encontro, o subsolo de acesso à entrada principal, é um mar de
cabeças. As pernas fraquejam, a síndrome do pânico está
de volta. A barriga, um campo de batalha: fígado contra tripas, estômago
contra bofes, diafragma contra o resto do mundo. Tudo dentro de você se
revolve. Revolvimento. Revolvução. Revolução. E
você vomita o que tem, o que não tem e até a alma que você
nem sabe se tem...
De súbito, lembrou: o tio dera o número do celular. Me diga aonde
está, não se aproxi... A bateria descarregou. Você não
sabe para onde ir e avança, como se estivesse hipnotizado. Dá
licença... Sou eu... Sim, sou eu. Acendem-se todas as luzes do "Castelão".
Câmeras. Ação. Sim, parece um filme policial, onde você
faz o bandido. Empurrões. Xingamentos. É esse? Tem mesmo cara
de assassino. Vamos dar um jeito nele agora. Seis soldados formam um cordão
de isolamento em torno de você. A multidão apupa, grita: "solta
Barrabás, crucifica", não, você não está
se comparando, foi sem querer, pelo amor de deus, foi mera associação
de ideias: me perdoem. Canalha. Monstro. Assassino. Repentinamente descobre
que nada disto aconteceu com você. E sim, com um colega do sexto ano.
Você ainda faz o segundo. Ainda assim, desiste de estudar medicina. Abandona
a faculdade. Nunca mais pisou lá. Nem pra trancar a matrícula...
(24/10/2005)