A Garganta da Serpente
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Vivo Morto Vivo

(Raymundo Silveira)

Você não acerta repor o fone no local certo. Treme, sente falta de fôlego, dor no peito, cegueira, tonteira, suadeira, rijeza, moleza, gastura, friúra, quentura, baticum no coração, formigação, desesperação... Pânico. Aquilo não é mais um quarto de dormir. É uma morgue, em seguida, uma sala de depoimentos policiais, uma cela, um calabouço, um cadafalso. Depois é uma sala de aulas, um jardim da infância, uma creche, os aposentos da sua mãe, um berço... Um útero. Você estava de plantão há trinta e seis horas: vinte e quatro para cumprir o estágio obrigatório na maternidade e doze no Pronto Socorro, para tentar sobreviver ganhando uns trocados a mais. Portanto, muito cansado, com sono e mal alimentado. Seu último ato foi encaminhar ao IML o cadáver de uma criança vítima de atropelamento.

Doutor, é do Instituto Médico Legal, aqui quem fala é o auxiliar de necrópsias. Seu colega legista não passa bem e pediu-me para lhe avisar... Se prepare, pois a notícia não é nada boa: o menino enviado pra cá pelo senhor está vivo. O doutor já ia começando a fazer o talho da autópsia quando...

Você não quis escutar o resto. Poucos minutos mais tarde a crise de pânico se transformou num profundo abatimento... Quase desmoronamento. Sua única esperança é que aquilo não tenha sido real, e sim um pesadelo. Você se apalpa, anda pelo quarto, lava o rosto com água gelada, se vê no espelho, arregala bem os olhos e percebe o fone pendurado, pendulando, balançando feito um enforcado. Logo, muda de ideia: talvez se trate de um trote... É isso, um trote. Não pode ser verdade... Você tem certeza: a criança estava morta. Não escutou coração, comprovou a ausência de movimentos e ruídos respiratórios, constatou a inexistência de reflexos pupilares, fez massagens cardíacas, respiração boca a boca, examinou novamente... É isto: um trote. Uma brincadeira de mau gosto ou um gosto de maldade sem nenhuma brincadeira. Quem sabe, alguém o odeia, seja lá qual for o motivo, e você não sabe...

Como um desvalido da sorte, se vale de um desvalium qualquer retirado de dentro da maleta. Se acalma um pouco mais. E pensa. Você só tem vinte e cinco anos. Há apenas quinze ou vinte minutos, havia um futuro de glórias, multidões de esperanças, pencas de sonhos. E somente dois dedos de desilusão. Todos os preparativos para os festejos da colação de grau já estão programados. Missas solenes, a cerimônia, o baile. A semana inteirinha, que precede o Natal, de comemorações. Você não comprou o anel, porque a noiva rica deu de presente, mas o terno decente que nunca possuiu, foi comprado em dez prestações, sem entrada. Você veio de baixo, muito debaixo. Passou fome, dormiu no chão, foi humilhado, desacreditado, tratado como um cão. Pensa, pensa, pensa. E calado, pergunta: por que comigo, meu Deus? Se eu tivesse saído exatamente na hora, como costumava fazer, e não seis minutos depois, estaria livre. Livre. Por que estes trezentos e sessenta segundos fizeram tanta diferença na minha vida? Por que não aconteceu com o plantonista seguinte? Um cara rico, com pais influentes, primo governador, tios políticos, senadores, deputados... Você quer acreditar ser possível o tempo voltar atrás. Tem de poder voltar atrás. No entanto, sabe que não pode. Triiiiiiiiiiimmmmmmm: foi como uma martelada no meio da testa. Doutor, aqui é (do Inferno) do Pronto Socorro. Venha urgente. O diretor quer falar com o senhor...

Você não tem ânimo, nem motivação, nem coragem pra nada. Não sabe como agir. Com quem contar. Procura, e não acha, uma pessoa a quem telefonar. Pedir ajuda, socorro, para lhe acompanhar ao Pronto Socorro. Pensa nos nomes de vários colegas. Nenhum é confiável. A princípio, todos farão questão de ajudar, prestar solidariedade, vestirem-se de samaritanos, aparecerem de cirineus, para a televisão, para a imprensa... Para a mídia. A concorrência feroz não permite rasgos de generosidade. De autêntica caridade franciscana. No íntimo estarão gozando, telefonando uns para os outros, espalhando aos quatro, aos cinco, aos milhões de ventos, a sua desgraça. Uma peça a menos no tabuleiro de xadrez. Xadrez. Xadrez. Xadrez. Conversam baixinho. Apenas entre eles. Não têm coragem de admitir que estão felizes, sequer para si próprios. Não acreditam que isso seja possível acontecer. Imaginem! Nós, os Príncipes, filhos de Asclépio, irmãos de Hígia e de Panaceia, sermos capazes de tamanha mesquinharia! A consciência repugna a ideia. Trata-se de um processo subconsciente, quase inconsciente. Logo mais todos os jornais do país darão em manchete, senão os da Terra inteira, a televisão em edição extra, se escutares me avisa... na verdade, cara, estou telefonando porque é nosso colega, e se encontra numa situação crítica, talvez irreversível, talvez, não: irreversível, irreversibilíssima, precisa da nossa ajuda, ah, então já sabias? e agora? está liquidado, coitado, não tem mais futuro como médico... nem como aplicador de injeções será confiável, talvez nem como nada, será sempre aquele doutor que mandou uma pessoa viva para o necrotério, na verdade estou com uma pena enorme, também não é pra menos, vamos ampará-lo, somos colegas, somos amigos, acima de tudo, somos cristãos. Cristãos. Cristo. Oh meu Deus, não, não é possível, não pode ser verdade...

Afinal, você se lembra daquele tio que não vê desde quando passou no vestibular. Não por sua vontade, claro. Mas por imposição daquela vida agitada. Dos estudos. Das noites em claro. Da puta lutalabuta. Ou pelo menos assim você racionaliza. Como vou encontrar o telefone dele? Deve estar no catálogo. Este aqui é só de endereços, não sei mais onde mora. Não lembro sequer o nome da rua, deve ter se mudado. Telefonista, podia me dar o número... Alô, tio? Aconteceu uma tragédia. Me ajude pelo amor de Deus... Não se trata disso, não fui acidentado... Não, não matei ninguém, ou pelo menos ainda não, espero... Estou tentando ter calma, escute bem, seguinte...

Você se aproxima do hospital. De longe já pode perceber: tem gente trepada até nas marquises. Refletores, câmeras, unidades móveis dos principais jornais, das estações de tv, várias viaturas da polícia: uma delas um camburão. Um rabecão. Não tem como encontrar o tio no meio daquela multidão. O local onde marcaram encontro, o subsolo de acesso à entrada principal, é um mar de cabeças. As pernas fraquejam, a síndrome do pânico está de volta. A barriga, um campo de batalha: fígado contra tripas, estômago contra bofes, diafragma contra o resto do mundo. Tudo dentro de você se revolve. Revolvimento. Revolvução. Revolução. E você vomita o que tem, o que não tem e até a alma que você nem sabe se tem...

De súbito, lembrou: o tio dera o número do celular. Me diga aonde está, não se aproxi... A bateria descarregou. Você não sabe para onde ir e avança, como se estivesse hipnotizado. Dá licença... Sou eu... Sim, sou eu. Acendem-se todas as luzes do "Castelão". Câmeras. Ação. Sim, parece um filme policial, onde você faz o bandido. Empurrões. Xingamentos. É esse? Tem mesmo cara de assassino. Vamos dar um jeito nele agora. Seis soldados formam um cordão de isolamento em torno de você. A multidão apupa, grita: "solta Barrabás, crucifica", não, você não está se comparando, foi sem querer, pelo amor de deus, foi mera associação de ideias: me perdoem. Canalha. Monstro. Assassino. Repentinamente descobre que nada disto aconteceu com você. E sim, com um colega do sexto ano. Você ainda faz o segundo. Ainda assim, desiste de estudar medicina. Abandona a faculdade. Nunca mais pisou lá. Nem pra trancar a matrícula...

(24/10/2005)

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