"Padre Nogueira, Padre Nogueira, eu bato na nova ou bato na velha?"
Aquela já era a undécima vez que o Sacristão Benedito Silvestre
berrava estas palavras à porta do quarto de dormir do vigário,
Padre Manuel Nogueira, enquanto faziam coro com o seu alarido, pancadas na porta
que ele aplicava com os nós dos dedos. O vigário tinha um sono
muito "pesado", mas já despertara à terceira ou quarta
investida contra o seu sossego àquela hora da madrugada. À princípio
imaginou tratar-se de um pesadelo. Tal qual o padre José Miguéis,
aquele do "Crime do Padre Amaro", Nogueira costumava ir se deitar
logo após um lauto jantar, embora nem sempre peixe fizesse parte do cardápio.
Felizmente ainda não tinha tido nenhuma ameaça de surto apoplético
como o inditoso vigário de Leiria, embora as beatas que lhe preparavam
as refeições ficassem sempre preocupadas dado o volume de alimentos
que o cura costumava devorar. "Padre Nogueira, ô Padre Nogueira!
Eu bato na nova ou bato na velha?" Quando percebeu que se tratava de um
fato concreto e reconheceu a voz do Sacristão, Nogueira, a princípio,
supusera que o seu auxiliar havia enlouquecido, por causa disto evitou falar
qualquer coisa de imediato temendo incrementar-lhe a fúria. Depois lembrou
que moravam com ele, duas mulheres, uma irmã de cinquenta e cinco
e uma meia irmã de vinte e oito anos. Ficou ainda mais preocupado, temendo
pela sorte das duas senhoras e só então abriu a porta. "O
que aconteceu, Bené?" "É que o senhor ontem não
me avisou se era para bater a chamada da missa no sino na hora nova ou na velha
e eu não dormi preocupado, então..." Hora Nova e Hora Velha
era como os habitantes do vilarejo se referiam às mudanças do
horário de verão. O Padre Nogueira só então caiu
em si e sentiu um misto de frustração e de indignação
contra o auxiliar. "Bené, como tu te atreves a vir aqui às
quatro da manhã..." "Quatro, não, cinco. Quatro só
se for na velha, porque na nova..." "E eu quero lá saber se
é nova ou velha, Bené. O que sei é que vieste perturbar
o meu sono. Devias ter-me perguntado isto ontem, às oito, na hora do
jantar" "Mas ontem às oito eram oito mesmo, já hoje
não serão mais. Hoje só serão oito horas se for
na velha, porque na nova..." "Vaitimbora daqui seu idiota, vai bater
na senhora tua avó" "Quer dizer então que é pra
bater na velha?" O padre não disse mais nada. Limitou-se a fechar,
com violência, a porta na cara do sacristão.
O Padre Nogueira tinha dois ideais em sua vida: um imediato e outro que ele
pretendia que fosse o mais remoto possível. Seus projetos não
tinham o mesmo substrato, mas ambos se relacionavam com o "eterno".
O primeiro ideal já estava se concretizando aqui mesmo na Terra e o outro,
ele esperava que se processasse no Paraíso. O primeiro Ideal do Padre
Nogueira, como se disse, encontrava-se em plena vigência - era a "eterna
comilança". E o segundo - aquele que ele desejava que estivesse
ainda muito distante - a "eterna bem-aventurança". Com efeito,
o vigário, excetuando os atos por ele julgados indispensáveis
para alcançar a segunda meta, só pensava em comida. Quando ele
completara vinte e cinco anos de vida "comendotal" - um adjetivo cuja
etimologia resultava da junção das palavras comensal e sacerdotal
-, fora presenteado pelos seus paroquianos com um enorme frizer, e estes mesmos
cuidavam para que estivesse sempre abastecido com filés minhons, costelas
mindinho, alcatras, maminhas, costeletas de cordeiro, coxões de porco,
frangos, peixes, ovos e outras vitualhas perecíveis. Uma ração
rotineira do Padre consistia apenas de duas partes: uma entrada e um prato principal.
A primeira compunha-se de três ou quatro bifes de meio quilo cada um,
ou um frango e meio desossado ou ainda duas terrinas de maionese de peixe. Como
prato principal ele devorava um pernil de porco inteirinho ou dois quilos de
peixe assado no forno ou cozido num molho com muito creme de leite. Não
era à toa, portanto, que ele, com um metro e sessenta e seis centímetros
de altura, pesasse cento e quarenta quilos. Era vítima frequente
das chacotas dos próprios colegas. "Padre Clemente, o senhor não
viu o Padre Nogueira?" Perguntou, certa manhã, o alfaiate. "Hoje
ainda não, por quê?" "Estou cortando uma batina para
ele e tenho de tomar-lhe algumas medidas" "Você não tem
geladeira, homem?" "Tenho sim, por quê?" "Tire as
medidas por ela, é o manequim mais adequado pra ele!"
Padre Nogueira viveu mais oito anos depois daquela madrugada em que mandou o
Bené bater na velha, digo, na avó dele. Sofria de diabete e fora
terminantemente proibido de comer massas e doces. As beatas escondiam, mas ele
também fazia o mesmo e, nas madrugadas retirava de detrás de livros,
de gavetas e até de dentro de imagens de santos, bocados de pães,
biscoitos, chocolates e devorava tudo duma só vez. Pouco antes de morrer
veio o colega e ele confessou haver praticado todos os pecados capitais - exceto
o da gula - e que se arrependia amargamente. Comungou e recebeu a extrema unção
que agora já havia sido rebatizada de unção dos enfermos.
Depois o confessor pediu que ele pronunciasse suas últimas palavras.
"A Mariinha está aí?" "Está não Nogueira,
foi na casa dos pais dela". "A Estela está aí?"
"Não Nogueira, também saiu; foi à igreja". "A
Das Dores está aí?" "Está, sim". "Pois
me faz um favor, Clemente, diz a ela que ponha só duas latas de creme
de leite no meu peixe. Preciso fazer dieta!" E expirou.