Manuel Ferreira tinha mais de um milhão e meio de unidades monetárias
da vez e do dia em que isto aconteceu. Tinha também muita vontade de
ganhar mais, um filho (o Bezim), e inúmeros inimigos. Por causa da sua
fortuna se sentia com o direito de mandar em todos: no padre, no juiz, no médico,
no advogado, no farmacêutico, no cachorro e na ralé; exatamente
nesta ordem. Ralé, para ele, eram todas as pessoas que não tivessem
dinheiro e nem os membros das categorias profissionais supracitadas. O que ele
não tinha era compaixão para com o próximo, coragem de
gastar e vontade de tomar banho. "Meu filho, seja tudo na vida: ladrão,
caloteiro, estelionatário, assaltante, traficante, sequestrador,
tudo enfim, exceto pobre!" - costumava aconselhar ao Bezim. Manuel Ferreira
morreu aos 71 anos, de enfisema pulmonar; para quem não tem dicionário
de mediquês aí por perto traduza estas duas palavras por "falta
de ar". Quando já estava em vias de partir desta para melhor veio
o padre. "Tenha fé seu Manuel". "Seu padre, já
tenho fé demais - e fedia mesmo -, o que mais me faz falta agora é
fôlego e dinheiro". Afora esta fala, pouco disse ao vigário;
sua avareza era tamanha que evitava o sacramento da confissão a fim de
economizar palavras. "Bezim, meu filho, olhe o que lhe disse; estás
lembrado?" "Tô pai, é para ser tudo, menos pobre".
"Isso mesmo meu filho". "Escute! O "cumpade" Zacaria
ficou de me comprar umas vacas. Eu pedi cento e cinquenta por cabeça.
Mas se ele "botar" cento e quarenta e nove e novecentos, venda. Menos
nem um tos... - e tossia, sibilava, estertorava, ansiava - ..menos nem um...
"cof, cof, cof", tos... tão!" Foram estas as suas últimas
palavras.
Passou-se, passou-se e o Bezim seguiu à risca as recomendações
paternas. Morava com a mulher, um filho de dez anos, o Júnior e uma filha
de quinze, a Mariana numa água furtada imunda e exígua onde faltavam
luz, água encanada e instalações sanitárias. Mas
o milhão e meio do velho permanecia devidamente atualizado - naquele
tempo havia uma expressão esquisita chamada correção monetária
à qual ele recorrera a fim de manter intacto o seu capital/herança.
A Mariana adoeceu e morreu de apendicite porque o SUSto daquele tempo - foi
durante o governo dum político que tinha as iniciais parecidas com nome
de inseticida - só servia para assustar os miseráveis. E tirar
dinheiro para gastar com a saúde da filha, nem pensar. Todavia, do mesmo
modo que o pai Manuel, Bezim achava que mandava em todo mundo: no padre, no
juiz, no médico, no farmacêutico, no cachorro e na ralé.
Exatamente nesta ordem. Foi então que ele passou a sentir o mesmo sintoma
do pai: fome de mais dinheiro. "Ora, raciocinava, se tenho tudo em minhas
mãos, o padre, o juiz, a patuleia, por que não utilizar
isto para ganhar mais?" Primeiro, fez um trato com o coveiro: "para
cada dente de ouro arrancado dos defuntos eu te dou dez unidades da vez e do
dia. "Não seu Bezim, é muito pouco!" Pouco, pouco? Quer
enriquecer às minhas custas é? Tu só tens o trabalho e
pegar um alicate e...". "É, mas tem uns que eu tenho de escancarar
a boca porque o ouro está lá detrás, num queixal".
"Ora, estes tu corta logo a bochecha; eu pago a navalha". Com efeito,
ganhou algum dinheiro durante um certo tempo. Mas sentia vontade de ter muito
mais. Depois de tramar mil e um trambiques que iam desde a contravenção
em grau leve aos crimes de sequestro mais hediondos, Bezim concluiu que
tudo aquilo seria muito perigoso. Então teve uma ideia genial.
"Porra, como não pensei nisto antes!" A ideia genial
de Bezim era muito simples e eficaz. Boa demais para ser verdade. Consistia
pura e simplesmente em vender vaidade. "Tu estás louco, homem -
diziam as pessoas a quem ele propunha sociedade - quem é que vai comprar
uma mercadoria tão abstrata?" "Ah é, é? Então
não queres acreditar! Pois tu vais ver!" E Bezim passou a oferecer
a sua mercadoria. Dos feios tirava e vendia fotos onde o cliente aparentava
as feições do Marlom Brando. Mas não no tempo de "O
Poderoso Chefão" - ele tinha clientes para este tipo também
- mas no de "Sayonara". Para os que tinham vontade de ser Doutor,
mandava fabricar "diplomas", e vendia como água mineral no
deserto, a quem bebia e acordava de ressaca. Para os que ardiam de desejo de
ser poeta, havia uma equipe de cordelistas especializada em fabricar poemas
sob encomenda. Ele ficava com noventa por cento do apurado e pagava dez aos
"poetas" de aluguel. Os clientes pagavam e ainda por cima ficavam
tão felizes que o homenageavam pondo-o como sócio honorário
das suas instituições. Quando ele estava para completar sessenta
anos chamou o Júnior. "Júnior, meu filho, seja tudo na vida:
cafetão, lunfardo, estelionatário, contraventor, sequestrador
e até vendedor de vaidades, só não seja pobre. Hoje o Júnior
possui muito dinheiro e acha que manda em todos: no padre, no juiz, no médico,
no advogado, no farmacêutico, no cachorro e na ralé. Exatamente
nesta ordem. Mas continua vendendo vaidades como cachaça em terreiro
de macumba. Com o advento de um novo século o produto ficou tão
inflacionado (inflação de demanda, como dizem os "homes"
do Banco Central que ganharam fortunas com uma tal de desvalorização
cambial), que o Júnior teve de inventar outros tipos de vaidade para
vender.