A Garganta da Serpente
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A Tosse

(Raymundo Silveira)

Entrou, abriu a única janela, estranhou um pouco o ar viciado, de centro de cidade grande, mas inspirou profundamente para se apossar de todos os espaços. Passou cerca de meia hora tateando o chão e alisando as paredes como se afagasse o primeiro amor da sua vida. A seguir atou a rede e se deitou, sentindo-se o homem mais rico da face da Terra...

Manuel Belizário era um carteiro aposentado e solteiro. Apenas isso. Sua vida tinha sido só trabalho. Uma infância difícil tirou seu romantismo. Assistira, muitas vezes, o pai passar vergonha por falta de dinheiro para pagar o aluguel. Então jurou que teria um lugar onde morar, nem que para isto precisasse vender a própria alma ao diabo. Era esse o seu sonho. Nada mais pretendia. Depois de trinta e cinco anos de trabalho, privando-se até de alimentos essenciais, poupou o suficiente para pagar boa parte de uma quitinete. O resto pediu emprestado de um colega, para devolver com juros, direitinho, todo santo mês. Tinha sido um irmão, o colega, que passava apertado também. Ele ia precisar fazer mágica com a mixaria que sobrasse da amortização da dívida. Ainda assim fazia questão. Era ponto de honra.

O dia em que recebeu as chaves do pequenino imóvel foi o mais feliz da sua vida. Certo, não era uma construção de primeira. As paredes eram finas, o acabamento deixava a desejar. Mas era dele. Ali nada poderia lhe perturbar o sossego, a sensação de ter, finalmente, alcançado o maior objetivo da sua vida. Era dono da rede e, o mais importante: era dono da casa! Era proprietário. Podia, enfim, dormir em paz.

Ao tentar conciliar o sono, um intermitente ruído se fez notar e começou a incomodar um pouco. Pelas paredes passava o som de uma tosse cheia, que se repetia a intervalos cadenciados. Coitado! Deve estar com um brutal resfriado, pensou. E até cogitou de ir visitar o novo vizinho, levando uma receita infalível de mel de jandaíra preparado com a casca da jurubeba, que a mãe costumava fazer pra ele, quando criança. Desistiu, porque ainda não sabia de quem se tratava. E neste mundo, meu Deus, tem todo tipo de gente. Quem sabe como seria recebido...

E foi parando de pensar devagarzinho, só no leve embalo da rede, até que dormiu. Quer dizer, começou a dormir, porque aquele sono não durou mais do que cinco minutos. Com o sossegar do movimento, na rua, os pequenos sons criaram alma nova e mais se distinguiam. Então aquela tosse ganhou importância, cresceu, virou tosse danada, tosse braba, tosse de cachorro doido, tosse comprida, tísica! Ele se revirava na rede, cobria a cabeça, bufava. Tosse infernal! Levantou-se, foi lambiscar na cozinha a sobra do jantar improvisado. Armou-se de paciência e, resolvido a ignorar a amolação deitou de novo. Era fácil: bastava se abstrair, pensar na felicidade que estava sentindo.

Só, que o maldito vizinho, não sabia que era dia de felicidade. E estava disposto a estragar sua alegria: cada vez mais se soltava, parecendo até se divertir com o que ocorria. Tossia com gosto, com ritmo, quase por partitura. Era só contar o tempo e lá vinha...E ele, de irritado, foi ficando mais nervoso, apopléctico, ensandecido: Aquilo já não parecia uma tosse, mas esturro de jumentos. Mais que isso. Era como se um tropel de centenas de jegues, relinchando, estivesse atravessando disparada e ininterruptamente o umbral da sua janela. Mesmo que ele se encontrasse há mais de setenta e duas horas em estado permanente de vigília não conseguiria dormir. Assim, desesperado, viu a noite passar. E a manhã teve sabor de ressaca, de desânimo, de cansaço. Ele não era de encrenca. Precisou criar coragem pra bater na casa do outro, ao menos pra saber se podia fazer algo. Afinal, se ia viver ali para sempre, se aquele era seu destino, mesmo por não lhe restar outra opção, precisava construir uma vida agradável e tentar fazer amigos.

Quando a porta se abriu e aquela figura teimosa apareceu, sentiu a inutilidade do seu propósito: o sujeito era um tossidor crônico, assumido, adicto mesmo. Estava na cara! Nada do que ele pudesse falar ficaria sem uma resposta antipática, de que fosse cuidar da sua vida. Então Belizário conheceu o verdadeiro significado do dito popular: ver o que é bom pra tosse. Foram quinze noites seguidas de tosse e insônia. Belizário praguejava, porém, ao mesmo tempo, conservava a esperança de que aquilo fosse passageiro. Tinha que ser passageiro. Era só mais um tributo que ele pagava pelo seu status de proprietário. Simplesmente se recusava a aceitar, mas, a verdade é que o sonho do ex-carteiro tinha virado pesadelo.

Costuma-se dizer que a desgraça nunca vem sozinha. Pois foi exatamente o que aconteceu a ele. A tosse do vizinho era tanta, tão pontual e persistente, existia tanto, que impregnou a sua memória auditiva e o contaminou por condicionamento. E ele, sem poder resistir, exaurido, depauperado pela vigília involuntária, começou a apresentar o fatídico sintoma. A princípio, uma tossezinha tímida, insignificante perto da outra, que reverberava pela noite adentro. Mas aos poucos foi ganhando porte, coragem e ele passou, então, a tossir tanto quanto o tal sujeito.

E uma tosse parecia responder à outra. Era mais que um eco. Era uma espécie de diálogo infernal. Uma opereta que tinha início por volta das nove da noite e se estendia até as oito da manhã seguinte. Quem iniciava era sempre o inquilino mais antigo. O homem era um verdadeiro tenor. Sua tosse era impostada, expressiva, com a extensão de uma oitava para o dó central. Era úmida, cheia, produtiva. E seguida de uma expectoração catarral, cujo volume não se podia ver, entretanto era possível adivinhar, pela intensidade, duração e frequência do ruído. Os escarros soavam, como se duzentas peças de lona estivessem sendo, simultaneamente, rasgadas à força, num ambiente dotado de recursos acústicos, propositadamente preparados para incrementar a reverberação sonora. Belizário respondia imediatamente como se estivesse desempenhando o papel de baixo. Sua tosse era seca, grave, resultante de uma vibração com frequência lenta e aquém da afinação convencionada. E nesse dueto as vozes se misturavam harmonicamente. Usavam recursos de staccato, vibratto, portamentos inigualáveis, crescendos e diminuendos, acellerandos e rallentandos. Era uma récita prodigiosa, em que os artistas competiam entre si, toda santa noite. Com a agravante de que aquele concerto parecia estar acontecendo no Inferno.

O hábito, no entanto, é o mais tirano dos monarcas. E não hesita em escravizar, para sempre, os seus infelizes vassalos. Belizário acabou se acostumando com a tosse. Mais que isso: se tornou dependente dela. Já não conseguia passar sem aquele estranhíssimo duo. Aquilo passou a ser a razão da sua vida. O antídoto para sua solidão. Com a tosse se comunicava, trocava calor humano: existia! Só que, infelizmente, a doença do vizinho era pra valer. Era um enfisema dos brabos e, sem a menor cerimônia, acabou por matar o seu parceiro. Coitado, que fim triste...

Ver o enterro sair, o apartamento ser desocupado. O vazio. O silêncio cruel que se seguiu. O efeito daquilo o devastou. Parecia um zumbi olhando pela janela e vendo a vida, lá em baixo, pequenina, como os carros que passavam. Tudo perdera a graça. Ele se sentia como se não possuísse mais nada. Se ao menos não estivesse tão endividado daria um jeito de sair daquele lugar onde as recordações o atormentavam.

Mas imóvel pequeno tem certas vantagens: aluga rápido. E ruídos de mobília sendo arrastada não deixaram dúvida: um novo inquilino estava ocupando a quitinete do seu falecido parceiro.

Dizem que o melhor da festa é esperar por ela, mas Belizário não aguentou: Naquela noite começou a tossir mais cedo. Tossia pausadamente, se apresentando, convidando...E estremeceu de felicidade, quando escutou um leve pigarro ecoar no outro apartamento.

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