Entrou, abriu a única janela, estranhou um pouco o ar viciado, de centro
de cidade grande, mas inspirou profundamente para se apossar de todos os espaços.
Passou cerca de meia hora tateando o chão e alisando as paredes como
se afagasse o primeiro amor da sua vida. A seguir atou a rede e se deitou, sentindo-se
o homem mais rico da face da Terra...
Manuel Belizário era um carteiro aposentado e solteiro. Apenas isso.
Sua vida tinha sido só trabalho. Uma infância difícil tirou
seu romantismo. Assistira, muitas vezes, o pai passar vergonha por falta de
dinheiro para pagar o aluguel. Então jurou que teria um lugar onde morar,
nem que para isto precisasse vender a própria alma ao diabo. Era esse
o seu sonho. Nada mais pretendia. Depois de trinta e cinco anos de trabalho,
privando-se até de alimentos essenciais, poupou o suficiente para pagar
boa parte de uma quitinete. O resto pediu emprestado de um colega, para devolver
com juros, direitinho, todo santo mês. Tinha sido um irmão, o colega,
que passava apertado também. Ele ia precisar fazer mágica com
a mixaria que sobrasse da amortização da dívida. Ainda
assim fazia questão. Era ponto de honra.
O dia em que recebeu as chaves do pequenino imóvel foi o mais feliz da
sua vida. Certo, não era uma construção de primeira. As
paredes eram finas, o acabamento deixava a desejar. Mas era dele. Ali nada poderia
lhe perturbar o sossego, a sensação de ter, finalmente, alcançado
o maior objetivo da sua vida. Era dono da rede e, o mais importante: era dono
da casa! Era proprietário. Podia, enfim, dormir em paz.
Ao tentar conciliar o sono, um intermitente ruído se fez notar e começou
a incomodar um pouco. Pelas paredes passava o som de uma tosse cheia, que se
repetia a intervalos cadenciados. Coitado! Deve estar com um brutal resfriado,
pensou. E até cogitou de ir visitar o novo vizinho, levando uma receita
infalível de mel de jandaíra preparado com a casca da jurubeba,
que a mãe costumava fazer pra ele, quando criança. Desistiu, porque
ainda não sabia de quem se tratava. E neste mundo, meu Deus, tem todo
tipo de gente. Quem sabe como seria recebido...
E foi parando de pensar devagarzinho, só no leve embalo da rede, até
que dormiu. Quer dizer, começou a dormir, porque aquele sono não
durou mais do que cinco minutos. Com o sossegar do movimento, na rua, os pequenos
sons criaram alma nova e mais se distinguiam. Então aquela tosse ganhou
importância, cresceu, virou tosse danada, tosse braba, tosse de cachorro
doido, tosse comprida, tísica! Ele se revirava na rede, cobria a cabeça,
bufava. Tosse infernal! Levantou-se, foi lambiscar na cozinha a sobra do jantar
improvisado. Armou-se de paciência e, resolvido a ignorar a amolação
deitou de novo. Era fácil: bastava se abstrair, pensar na felicidade
que estava sentindo.
Só, que o maldito vizinho, não sabia que era dia de felicidade.
E estava disposto a estragar sua alegria: cada vez mais se soltava, parecendo
até se divertir com o que ocorria. Tossia com gosto, com ritmo, quase
por partitura. Era só contar o tempo e lá vinha...E ele, de irritado,
foi ficando mais nervoso, apopléctico, ensandecido: Aquilo já
não parecia uma tosse, mas esturro de jumentos. Mais que isso. Era como
se um tropel de centenas de jegues, relinchando, estivesse atravessando disparada
e ininterruptamente o umbral da sua janela. Mesmo que ele se encontrasse há
mais de setenta e duas horas em estado permanente de vigília não
conseguiria dormir. Assim, desesperado, viu a noite passar. E a manhã
teve sabor de ressaca, de desânimo, de cansaço. Ele não
era de encrenca. Precisou criar coragem pra bater na casa do outro, ao menos
pra saber se podia fazer algo. Afinal, se ia viver ali para sempre, se aquele
era seu destino, mesmo por não lhe restar outra opção,
precisava construir uma vida agradável e tentar fazer amigos.
Quando a porta se abriu e aquela figura teimosa apareceu, sentiu a inutilidade
do seu propósito: o sujeito era um tossidor crônico, assumido,
adicto mesmo. Estava na cara! Nada do que ele pudesse falar ficaria sem uma
resposta antipática, de que fosse cuidar da sua vida. Então Belizário
conheceu o verdadeiro significado do dito popular: ver o que é bom pra
tosse. Foram quinze noites seguidas de tosse e insônia. Belizário
praguejava, porém, ao mesmo tempo, conservava a esperança de que
aquilo fosse passageiro. Tinha que ser passageiro. Era só mais um tributo
que ele pagava pelo seu status de proprietário. Simplesmente se recusava
a aceitar, mas, a verdade é que o sonho do ex-carteiro tinha virado pesadelo.
Costuma-se dizer que a desgraça nunca vem sozinha. Pois foi exatamente
o que aconteceu a ele. A tosse do vizinho era tanta, tão pontual e persistente,
existia tanto, que impregnou a sua memória auditiva e o contaminou por
condicionamento. E ele, sem poder resistir, exaurido, depauperado pela vigília
involuntária, começou a apresentar o fatídico sintoma.
A princípio, uma tossezinha tímida, insignificante perto da outra,
que reverberava pela noite adentro. Mas aos poucos foi ganhando porte, coragem
e ele passou, então, a tossir tanto quanto o tal sujeito.
E uma tosse parecia responder à outra. Era mais que um eco. Era uma espécie
de diálogo infernal. Uma opereta que tinha início por volta das
nove da noite e se estendia até as oito da manhã seguinte. Quem
iniciava era sempre o inquilino mais antigo. O homem era um verdadeiro tenor.
Sua tosse era impostada, expressiva, com a extensão de uma oitava para
o dó central. Era úmida, cheia, produtiva. E seguida de uma expectoração
catarral, cujo volume não se podia ver, entretanto era possível
adivinhar, pela intensidade, duração e frequência do
ruído. Os escarros soavam, como se duzentas peças de lona estivessem
sendo, simultaneamente, rasgadas à força, num ambiente dotado
de recursos acústicos, propositadamente preparados para incrementar a
reverberação sonora. Belizário respondia imediatamente
como se estivesse desempenhando o papel de baixo. Sua tosse era seca, grave,
resultante de uma vibração com frequência lenta e aquém
da afinação convencionada. E nesse dueto as vozes se misturavam
harmonicamente. Usavam recursos de staccato, vibratto, portamentos inigualáveis,
crescendos e diminuendos, acellerandos e rallentandos. Era uma récita
prodigiosa, em que os artistas competiam entre si, toda santa noite. Com a agravante
de que aquele concerto parecia estar acontecendo no Inferno.
O hábito, no entanto, é o mais tirano dos monarcas. E não
hesita em escravizar, para sempre, os seus infelizes vassalos. Belizário
acabou se acostumando com a tosse. Mais que isso: se tornou dependente dela.
Já não conseguia passar sem aquele estranhíssimo duo. Aquilo
passou a ser a razão da sua vida. O antídoto para sua solidão.
Com a tosse se comunicava, trocava calor humano: existia! Só que, infelizmente,
a doença do vizinho era pra valer. Era um enfisema dos brabos e, sem
a menor cerimônia, acabou por matar o seu parceiro. Coitado, que fim triste...
Ver o enterro sair, o apartamento ser desocupado. O vazio. O silêncio
cruel que se seguiu. O efeito daquilo o devastou. Parecia um zumbi olhando pela
janela e vendo a vida, lá em baixo, pequenina, como os carros que passavam.
Tudo perdera a graça. Ele se sentia como se não possuísse
mais nada. Se ao menos não estivesse tão endividado daria um jeito
de sair daquele lugar onde as recordações o atormentavam.
Mas imóvel pequeno tem certas vantagens: aluga rápido. E ruídos
de mobília sendo arrastada não deixaram dúvida: um novo
inquilino estava ocupando a quitinete do seu falecido parceiro.
Dizem que o melhor da festa é esperar por ela, mas Belizário não
aguentou: Naquela noite começou a tossir mais cedo. Tossia pausadamente,
se apresentando, convidando...E estremeceu de felicidade, quando escutou um
leve pigarro ecoar no outro apartamento.