Quando, num dia qualquer dum incerto mês de 1527, tomei um rumo, a fim
de tomar um rum, na taberna de uma ruidosa rua, não pretendia me embriagar.
Tomarei apenas um, cogitei. Um rum não embriaga ninguém. Meu propósito
era apenas simular embriaguez. Naquela data haveria um evento importante, onde
eu pareceria desimportante. Pareceria, não: seria mesmo. Mas haveria
muita gente mais desimportante do que eu tornando-se importante. Queria me destacar
pela embriaguez, sem estar embriagado, porque se supusessem que estava, seria
destaque. Quem passasse por mim e me visse tomando um rum às sete da
manhã, cuidaria que estivesse bêbado e imediatamente a notícia
seria divulgada. Este seria o único meio de chamar atenção.
Jamais encontraria outro tão eficaz. Conheço gente famosa que
não seria tão famosa assim se acaso não se embebedasse.
Quem sabe, até a televisão noticiasse. Precisava disto. Se arriscasse
a minha vida para salvar a de outra pessoa não me sobressairia tanto.
Embora não seja reconhecido, meu valor é inegável. Antes
de aquele alemão ter inventado os tipos móveis, eu já tinha
publicado três best-sellers e vendido mais de três mil exemplares.
Para comparar, o artesão de Mainz só chegou a produzir quarenta
e oito volumes de uma Bíblia aleijada: não ultrapassava 1300 páginas.
Mesmo considerando as notas de rodapé, anotações, marcas
de parágrafos e iluminuras, as Bíblias eram autênticos dinossauros
editoriais diante dos meus livros. E ainda existe quem considere a geringonça
impressora como sendo um marco. Símbolo de uma nova era, associada à
pólvora e até à bússola. Essa gente pensa que o
céu é perto. Há inclusive um filósofo "famoso"
vinculando a tal prensa ao progresso do conhecimento, ao ideal da pansofia e
ao sonho utópico de anular as consequências do pecado original.
Quando tomei o tal rumo, a fim de tomar um rum, na taberna de uma ruidosa rua,
ia ser inaugurada uma exposição. Somente a doente Bíblia
seria destaque. Haveria também meia dúzia de gatos pingados, cujas
obras ou eram de uma insignificância medieval, ou escritas em anciãos
pergaminhos. Fui vetado. Pura inveja.
Certo, os meus livros jamais foram aceitos por qualquer editora. Eu próprio
mandei fazer. Vendi uma quinta de setecentas braças de fundura por quatrocentas
de largura. Não me arrependo... Peraí. Agora me deixa falar. Não
devias te queixar. Estás ressentido sem razão. A isto se chama
autopiedade. Imagina se estivesses no meu lugar. Tu te lembras daquela guerrinha
de cem anos? Pois eu estive nela. Fui ferido próximo a Orleãs.
Sou um mutilado de guerra. Um herói. Perdi uma unha. Nem fui condecorado.
Sequer recebo pensão. Uma injustiça. Sabe o que me responderam
quando pleiteei um beneficio de pelo menos um salário mínimo?
"Imagina se a Previdência Social fosse dar benefício a todo
mutilado... Uma guerra não é lá grande coisa para tanto
merecimento. Lutar numa guerra é alta distinção. Do contrário
não haveria voluntários. O simples fato de te permitirem lutar
já é, em si, uma grande recompensa". Todo dia tomo um rumo
a fim de tomar um rum, na taberna da rua ruidosa. Não para chamar atenção
de quem quer que seja... E sim pra comemorar o meu obscuro heroísmo.
Quanto a mim, nunca estive em guerra alguma. Nem prestei serviço militar.
Mas a minha injustiça foi mais grave. Fui jornalista. Um correspondente,
no exterior, do maior jornal deste país. Tornei-o famoso. Destaquei os
seus heróis nos quatro cantos do mundo. Graças a mim, o Pelé
é conhecido até no Paraguai. Nunca me deram sequer a Grã-Cruz
da Ordem de Rio Branco. Até o Papa Julio II (que não fez nada
a não ser assinar aquele malfadado tratado de Tordesilhas) ganhou uma.
Essa desculpa para tomarem um rumo, a fim de tomar um rum, na taberna da rua
ruidosa, às sete da manhã, é conhecida. Todo bebum tem
uma parecida. Todo bebum tem uma aparecida... Também passo pela rua ruim
por causa do rum. Mas por outro motivo. Sou membro dos alcoólicos anônimos...
Rumorosa rua ruim... Também costumo frequentá-la. Se não
fosse aquele pedregulho pontiagudo chamado de ladrilho e mandado assentar para
o desfile dos Cruzados, ainda no tempo do Santo Massacre de Jerusalém,
há mais de 400 anos, até que eu andaria mais por lá. Da
última vez dei uma topada e esfolei o dedão do pé. Médico
nenhum deu jeito. Foi preciso deixar apostemar pro cirugião-barbeiro
poder lancetar. E teve de ser a sangue frio. Nenhum anestesista na cidade. Todos
tinham ido para um Congresso na Bavária. E olhe que eu sou fiscal da
receita. Deviam ter ponderado que um homem de prestígio como eu poderia
sofrer um acidente. Ficasse pelo menos um de sobreaviso. Se quisesse, podia
devassar a declaração de rendimentos de cada um... Bastava cruzar
os Cpfs deles no computador. Duvido que não encontrasse alguma tramoia...
Li um dos tais best-sellers do nosso amigo bebedor de "um rum", às
sete da manhã, só para chamar atenção. Li também
essa história que falará de todos nós, embora sabendo que
só será escrita no remoto século XXI. Querem saber o que
penso? Todos vós (inclusive o futuro autor dessa narrativa) vos julgais
muito importantes. Buscais sucesso, prestígio, poder a qualquer custo.
Não passais de pobres coitados. Cinco João-ninguéns (contando
com o senhor Ray) querendo ser alguéns. Nenhum de vós sonhais.
Todos tendes ilusões. Diferentes de mim, que vivo o sonho na realidade.
Conheço a medida certa da minha importância.
- Como pode saber tanto a nosso respeito se acabaste de chegar?
Eu vejo sonhos. Eu vos vi sonhando. Embora ainda não saibais, todos vós
sonhastes com a realidade. Quando vos vi reunidos lembrei-me do sonho de cada
um. E como sabia que os sonhos se tornariam reais, suspeitei que conversásseis
sobre eles. Aliás, nada mais lógico. Quanto ao autor, também
sonhará algum dia. Antes de essa história ser escrita. Então,
vi o sonho dele por antecipação.