Já havia completado cinco anos de formado e não adoecia. Tinha
uma saúde de ferro, muito mais velha do que eu. Logo, não tinha
licença para clinicar. Havia muitos médicos burlando a lei, comprando
ou trocando entre si atestados graciosos. Um destes fora-da-lei chegou a me
propor um atestado de câncer do estômago (imaginem só! logo
de câncer do estômago), desde que eu, quando estivesse trabalhando,
fornecesse a seu filho, outro de esquizofrenia, pois era a última exigência
da Sociedade de Psiquiatria. Não aceitei. E ameacei denunciá-lo
ao Conselho de Medicina. Era muito raro algum desses médicos desonestos
ficar impune. Mais cedo ou mais tarde a verdade aparecia. E a pena era implacável:
cassação sumária do diploma. Cogitei de contratar loucos
mansos. Só estes são capazes de transformar o futuro em presente.
Preferi consultar uma vidente. Teoricamente, esperava matar dois coelhos: saber
quando e do que ficaria doente. Na verdade, não acreditava. Fui consultá-la
para que, influenciado pelas predições, impusesse a mim mesmo
a ditosa dita por ela ditada. Desde criança meu pai me convenceu de que
um homem de tudo é capaz, desde que detenha determinação.
Para mim, uma predição, embora supersticiosa, seria um excelente
incentivo a essa determinação. Seu destino já está
traçado: morrerá de velhice, entre noventa e cinco e noventa e
oito anos. Nunca vai adoecer: desista de ser médico. Preocupei-me. Contudo,
não desesperei. Tratei de me convencer de uma vez por todas da irracionalidade
das crendices.
Também quando criança havia escutado: os olhos não vendo,
o coração deixa de sentir. Como não via o tempo, deixei
de me preocupar. Dois anos mais tarde continuava são. Passei, então,
a ver o tempo. E a senti-lo. Afinal, eu já estava com trinta e sete anos.
Portanto, perto dos quarenta. Uma idade marcante na vida de qualquer pessoa.
Me autoinoculei com o bacilo da tuberculose. Aguardei seis meses, e me submeti
a exames. A resistência à bactéria havia aumentado. Comecei
a sentir autopiedade. Combati este terrível sentimento de um modo relativamente
simples: passei a ver em mim, outra pessoa. E aquela maldosa sensação
de bem-estar que acomete a todos, ao ver um semelhante aflito, voltou-se contra
mim. Ria da minha própria desdita. Me transformei num palhaço,
cujo ofício é gargalhar de si mesmo. Embora depois da função,
tivesse de enxugar as lágrimas de fogo com o lenço áspero
da desilusão, e gotejar colírios ardentes no rescaldo dos meus
olhos incendiados pela desesperança.
Todavia, não me deixei abater. Às vezes, tinha ganas de voltar
àquela feiticeira e forçá-la a se desdizer. Minha vaidade
cartesiana, agora proibia. Ou então, quem sabe, era o temor de ouvi-la
reiterar a predição. Ninguém é inteiramente imune
a superstições. Na dúvida, não se arriscar, manda
o instinto de vida. Tomei, então, a decisão extrema: me contaminar
com o vírus da sida. Era a era dos coquetéis. A doença
não tinha cura, mas podia ser controlada. Investi nisso todas as minhas
energias. Li muito. Estudei. Planejei. Avaliei as vias de contaminação
para escolher a mais eficaz e menos indigna. Pensei em sexo e em inoculação
direta. Escolhi a primeira. Mantive todos os tipos de relações
sexuais desprotegidas com cerca de meia centena de mulheres comprovadamente
soropositivas. Para abreviar, terminei injetando diretamente nas veias, sangue
de doentes. Aos primeiros sintomas de infecção, comemorei com
amigos. Cheguei a ter mais de quarenta graus. Tossia, vomitava e tinha diarreia.
Quinze dias depois, estava curado. Pela primeira vez cogitei de incinerar o
meu diploma. E depois, me matar.
Me aconselharam a viajar. Uma longa viagem seria uma paródia da realização
dos sonhos. Um emudecer de asas feridas permitindo-me vaguear pelas colinas
do amor, por entre pedras douradas e estradas alcatifadas de flores. Contanto
que levasse um coração genuflexo pelos instantes a se esvaírem.
Não viajei. Cada vez mais desesperado, voltei à mãe-de-santo.
Se desdissesse o que disse, pagaria tudo o quanto pedisse. Posso desdizer, se
quiser. Não precisa pagar, pois irá escutar uma mentira. Foi como
ouvir uma sentença de morte. Não se muda a sorte de uma pessoa.
Mas se tiver bom-senso, haverá uma atitude voltada para a conservação.
É como se uma grande quantidade de energia estivesse sendo contida por
forças de estabilização. Há algo novo a surgir,
mas que tende a se manter sob o controle das formas e forças da rotina
e da inércia. Entretanto, a partir de um esforço voluntário,
você pode se desapegar de hábitos exauridos, escolhendo cultivar
o que seja realmente bom. Procure uma atitude mais dinâmica do que aquela
provida pelas forças naturais, escolhendo algo bom para você se
dedicar, cuidar e fazer prosperar. Trate de remover esta ideia fixa.
Tente outra profissão...
Impossível: meu lugar é ser médico. Desculpe-me se sou
grosseiro. Não estou interessado em conselhos. Não necessito de
ajuda neste sentido. Tente você. Crie. Invente. Já vi questões
mais difíceis serem resolvidas através da magia negra... Não
peço para adivinhar o futuro, nem rever o passado. Desisto até
do presente. Peço apenas para modificar a minha sina... Pago qualquer
preço, mas não saio daqui sem uma esperança, porra... Bom.
Já que está assim tão desesperado, existe uma possibilidade.
Uma apenas. Mas vai custar muito caro. E veja bem: não estou falando
de dinheiro... Implorei já de joelhos. Peça o que quiser. Peça
tudo. Até o impossível. Pois eu me encarregarei de tornar possível.
Custe o que custar... Pois bem! Serei direta: terás de fazer um pacto
com o demônio.
Ela não fazia este tipo de serviço, mas conhecia gente de confiança.
Me entregou um cartão de visitas com dois nomes: Chico Bicho e Cobra
Preta - ocultistas. Toda sexta-feira à meia noite, os dois se ajuntavam
e seguiam para uma encruzilhada - hoje conhecida como "Encruzilhada do
Diabo" - onde diziam que se encontravam com o seu chefe, padrinho, patrão
e futuro proprietário das suas almas. Para que diabo o diabo queria as
almas do Chico Bicho e do Cobra Preta, era o que todo mundo se perguntava. Quando
voltavam do encontro com o padroeiro lá deles, Bicho e Cobra Preta ficavam
bebericando pinga na bodega do Joaquim Barrigudo, blasfemando contra deus e
todos os santos.
E escumavam uma baba escura, da cor de abacate podre. Dos olhos faiscavam umas
labaredas e também saía pelos buracos das ventas e dos ouvidos
uma fumaça preta com catinga de enxofre. Enquanto grunhiam numa voz esganiçada
e cheia de ódio: "maldito o padre, maldito o filho, maldito o esprito
santo". O Joaquim Barrigudo corria lá pra dentro, se benzia e dizia
umas jaculatórias, mas não tinha coragem de expulsar a dupla por
dois motivos: primeiro, porque eram eles os seus clientes mais abastados e perdulários,
logo, a maior fonte de lucro. Depois, porque tinha pavor de que os dois criassem
rixa dele. Quem me contou essa história foi a própria mãe-de-santo.
"Para não te enganares. Conheceres logo com quem vais te meter".
Mesmo sabendo de tudo isso, ainda cheguei a ter uma entrevista com os dois.
Paguei caro. Mas já estou com noventa e um anos. E até hoje nunca
fui médico...