A Garganta da Serpente
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O Riso do Morto

(Raymundo Silveira)

Um ébrio é alguém que acha muito lógica a gargalhada de um defunto se fingindo de morto, conquanto esteja convencido de que está morto mesmo... Embora, às vezes ache que não está. Um sóbrio, por sua vez, é aquele que, mesmo vendo com os próprios olhos um cadáver morrendo de rir, não acredita ou finge ignorar. Dizem não existirem bebuns que não sejam chatos, mas há os chatos e cinquenta e nove minutos... Era um destes. Morreu de quê? Já vinha doente? Tava com quantos anos? Peraí... Ele num tá morto, não... Está rindo. Não é raro um morto rir, mas esse tá vivo. Será que ninguém vê? O velório era numa funerária. A família, constrangida, não se dispunha a pô-lo no olho da rua: era filho de um figurão da política, muito influente e amigo. Curioso, eu não bebera nada além de um copo de água, mas vi o que vira o bebum: o morto, de fato, se sacudia de tanto rir. E também não acreditava que estivesse morto.

Não sabia que atitude adotar. Cuidei estar sonhando. Depois de muito pensar, tive uma ideia: afastei-me para um quarto isolado, tranquei-me por dentro, dei corda num despertador e ajustei para alarmar dentro de cinco minutos. Não. Não estava dormindo. Depois cogitei: talvez eu estivesse bêbado quiném o bebum. E, apesar da minha longa experiência, não me ocorria uma maneira de testar, com absoluta precisão, se estava ou não embriagado. Tive outra ideia luminosa. Sentei-me ao computador e redigi um texto sobre este tema, ou seja, como comprovar ou afastar a embriaguez de alguém. Telefonei para o meu antigo professor de redação, li o texto enquanto ele escutava com paciência e deu o veredicto: fique tranquilo, você não está embriagado.

Se não tivesse feito o propósito de nunca mais beber, ia tomar um drinque para ter a coragem do bebum e falar com um dos filhos ou com a viúva. Meu único receio era me julgarem louco ou bêbado também. Diante do impasse, enfim me dispus. Não podia ficar calado. Tinha de falar com o mais velho de quem sou íntimo. Levei-o para um local afastado. Reconheço que o momento é grave e só em dizer isso me sinto idiota. Sei também o quanto já estás cheio da conversa chata daquele bêbedo. Como sabes, não bebo há mais de cinco anos. Espero, portanto, que me leves a sério e não presumas uma recaída... O que há, amigo? Para que todo este arrodeio? Bem, vou ser direto: estou vendo a mesma coisa que o bebum diz estar vendo.

E quem não está? Desculpa, aqui não tem cego. Todos estão vendo. Então, não achas que... Que ele pode estar vivo? Absolutamente, não. Só aquele bebo imbecil insiste nesta fantasia. Temos o atestado de óbito. Foi redigido por dois médicos competentes e está registrado em cartório. Não me venhas dizer que duvidas de um atestado de óbito assinado por dois médicos idôneos. Bem, talvez tenha sido tão imbecil quanto ele... Afinal não devia ter me deixado influenciar pelas asneiras ditas por um embriagado. Ainda assim, ousaria insistir: deves chamar outro médico para examinar o cadáver do teu pai. O que é isso, homem! Deixa-me cheirar tua boca... Só podes ter bebido. Ou, como tu próprio disseste, se deixado influenciar pela conversa daquele bêbedo chato. Vou mandar pô-lo pra fora, embora correndo o risco do ressentimento dos pais... Tudo bem, espero não ter contribuído para tornar mais doloroso este momento tão difícil... Não. Resolvi te atender. Menos por não ter certeza do óbito, mas para te dar uma demonstração da minha consideração por ti e pela tua amizade.

Está morto, sim, não há dúvida. Rir ou deixar de rir não é sinal de vida ou morte. Alguém acaso já viu um gato vivo rindo? Diante de argumento tão sólido ninguém ousou contestar... Ou quase ninguém. Eita, doutorzinho incompetente... Onde já se viu precisar de médico pra saber que um morto tá vivo? Assim que eu cheguei vi logo... Foi a gota d'água: o bêbado foi retirado quase à força do recinto. Enfim, todos viram o defunto rindo. Só o ébrio ousou dizer, que estava vivo. Conquanto pudesse também estar convencido de que estivesse morto. Não se tocou mais neste assunto, mesmo depois do enterro.

(13/11/2005)

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