Não dormia há uma semana. Não comia há nove dias.
Não se banhava nem se barbeava há doze. Permanecia trancafiado por
conta própria, em uma água furtada próxima a Montmartre,
sempre deitado de costas com o olhar fixo no teto. Já tivera ideais, planos,
projetos e, finalmente, ilusões. Agora nada mais restava. Sua única
fonte de prazer era as masturbações compulsivas, praticadas a intervalos
cada vez mais frequentes, quase sempre sob o domínio de mórbidas
fantasias. Ora ejaculava sobre "vísceras de um cadáver de mulher
em adiantado estado de putrefação". Outras vezes o fazia imaginando-se
alvejado no próprio ventre pelos tiros disparados de uma pistola empunhada
por uma prostituta despida. Noutras, ainda, as parceiras imaginárias eram
a sua irmã ou mesmo a mãe.
Eventualmente, levantava-se para urinar, mas na maioria das vezes fazia isto no
próprio leito. Morava sozinho no cubículo miserável de um
prédio quase em ruínas situado na Rue de Dunkerque, cujo aluguel
há quatro meses não pagava por absoluta carência de fundos,
ânimo, interesse, conveniência e perspectiva de consequências.
Tudo lhe era indiferente, exceto os atos solitários obsessivos. Baratas
e até mesmo ratazanas, não muito raramente, passavam-lhe sobre o
corpo, mas ele permanecia absolutamente apático também quanto a
isto. No domingo pela manhã desceu ao rés do chão, portando
um volumoso saco plástico de cor parda e deixou o prédio, dirigindo-se
à Gare du Nord onde entrou no métro, chamando a atenção
de todos os passageiros. Desceu em Barbès Rochecouart, fez conexão
para La Chapelle, onde apeou. Subiu a escadaria do Sacré Coeur e entrou
na Basílica no instante exato em que o coro entoava o Cântico da
Comunhão:
"Le pain du ciel nous est donné/ C'est Lá le banquet véritable/
L'agneau pour nous s'est immole/ Et Dieu nous invite a Sa table!"
Pegou a longa fila de fiéis e - ao chegar a sua vez -, comungou sem afetar
nem dissimular piedade. Deixou a Basílica, antes do término da celebração,
pela mesma porta por onde entrara. Desceu metade da escadaria onde parou e se
masturbou publicamente para quem quisesse olhar, aconchegando o misterioso saco
plástico contra o peito com a outra mão. Retirou o preservativo
cuidando para que o sêmen ficasse aí recolhido; deu um nó
e pôs no bolso direito da calça. Quando estava abotoando a braguilha,
o coro ainda cantava a aclamação eucarística:
"Dieu caché, je Vous adore en Ce sacrement ! / Je ne vois qu'un peu
de pain, mais je crois pourtant:/ Qui pourrait douter de Vous, maitre souverain,/
Quand Ce corps nous fut livre deVos propres mains?"
Desceu os degraus restantes. Voltou a tomar o métro em La Chapelle e seguiu
para Père Lachaise. Pegou um mapa à entrada do cemitério,
continuou a andar, orientando-se por ele, até alcançar o túmulo
de Edith Piaf. Retirou um minúsculo "walkman" do bolso traseiro;
colocou os "headphones"; acionou a tecla "play" e os sons
de "La Vie en Rose" ecoaram em seus ouvidos a todo o volume. Pegou o
preservativo e rasgou-o bruscamente, despejando todo o seu conteúdo sobre
o jazigo da cantora, onde também se sentou.
Quando a música terminou, levantou-se e saiu serenamente do campo santo
como se houvera acabado de fazer uma prece pela alma da artista Tornou à
estação do métro procurando orientação pela
linha Galliéni/Pont de Levallois. Seguiu em direção ao terminal
Becon, mas desceu em St-Lazare. Essa estação é movimentadíssima,
mas os olhares do público eram-lhe completamente indiferentes. Saiu da
Gare pelo portão que dá acesso à Rue de Rome, por onde seguiu,
após dobrar à esquerda. Foi ter à Rue St-Lazare e, através
dela, chegou ao Bouleverd Haussmann. No cruzamento deste com St-Augustin, virou
novamente à esquerda e continuou andando até chegar ao Bd Malesherbes,
ao longo do qual, após cerca de três quartos de hora de caminhada,
alcançou a Place de la Concorde.
Urinou, despreocupadamente, dentro de um recipiente de vidro, junto ao obelisco,
encoberto parcialmente pela fonte, após atravessar, perigosamente, um caótico
fluxo de veículos que circulam em alta velocidade naquelas imediações.
Aproximou-se da estátua símbolo da cidade de Lille - quase em frente
à entrada de acesso para os Esgotos -, aspergindo-a com urina em todas
as direções. Seguiu pelos Champs-Elysées até a Etoile
onde pôs o misterioso saco plástico junto à pira perpétua
em homenagem ao Soldado Desconhecido. Desceu para o subterrâneo e embarcou
outra vez no métro em direção a Nation, mas desceu na estação
de Bir Hakeim. Subiu para a Avenue de Suffren e dirigiu-se para a Torre Eiffel.
Entrou no elevador e saiu no segundo estágio. Aproximando-se da amurada
de proteção - e nem sequer reparando na paisagem deslumbrante diante
de si -, elevou-se se sustendo nos próprios braços, sentou-se de
costas e deixou-se cair no vazio.