A Garganta da Serpente
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Operação

(Raymundo Silveira)

Quando o porteiro me entregou, cuidei se tratar de um convite de formatura de uma turma de médicos. Daqueles luxuosíssimos, típicos de faculdades caras. Era um convite, sim. Mas para assistir à inauguração de um hospital de primeiro mundo, num menospreço escandaloso a um mundo de terceira. Não me surpreendeu tanto quanto o conteúdo. Além do convite, havia uma espécie de bônus destacável, me presenteando com um check-up que incluía uma consulta médica e todos os exames complementares de última geração. Desde um hemograma, até os métodos mais sofisticados de diagnóstico por imagem. Inclusive uma Ressonância Nuclear Magnética do corpo inteiro. Vou nessa. Fui. Bebi scotch e comi caviar no sábado. Na segunda, me preparei para a fila da consulta. Não havia. O único cliente era eu. Na terça, fiz os exames. Os resultados saíram na quarta. Você precisa se operar. E tem de ser logo. Na próxima sexta-feira. Cirurgia longa: no mínimo cinco horas. A recuperação será lenta. Mas doutor... Não tem mais nem menos. Já disse: tem de se operar. Não. Não pensei que fosse um pesadelo. Tampouco real. Senti-me uma meada. Duas linhas diferentes dobradas inúmeras vezes uma sobre a outra sem se emaranharem. Uma tinha o feitio de sonho. A outra de realidade. E então, posso marcar? Primeiro preciso pedir permissão à minha mulher... Não precisa. Já falei com ela. Não só permitiu, como queria para ontem. Tudo o quanto jamais fui, passei a ser. Nunca pretendi ser compreendido; preferia compreender. Agora mendigava compreensão. Esperava, também, me levarem a sério, eu que sempre desdenhei da seriedade. Ansiava para que o meu interlocutor reagisse com moderação à minha própria reação. A qual, por enquanto, era nenhuma. Sentia uma mistura de medo e de esperança. Coexistência de dois estímulos disparando reações mutuamente excludentes. Medo de que o médico desistisse de me operar, se acaso eu não concordasse com a data escolhida. Esperança de que ele adiasse pelo menos para a próxima semana. Precisava me preparar. Física e psicologicamente. Mas, no fundo, esperava mesmo era que desistisse da cirurgia. Naquela noite, enquanto um dos meus lados pelejava para dormir numa sonolência sem sono, o outro pensava: esqueci de perguntar do que vou ser operado. Diante de outras preocupações de menores desutilidades, a questão era irrelevante. Maisqueria queixar-me para ninguém. Ansiava o absurdo: a convivência pacífica de contrários. A fúria de Alexandre da Macedônia com a placidez de Zenão de Eleia. A eloquência de Cícero com a fleuma de Galeno. O arrebatamento de Danton com a frieza de Robespierre. O poderio do demônio com a onipotência de Deus. Todavia, o que mais magoava era a angústia; a intensidade do conflito. O choro do sol nascente só incrementou a ansiedade. Decido decidir tomar uma decisão. Duas horas na sala de espera de outro médico. Não sei... É meio duvidoso... Impossível lhe dizer com certeza. Sugiro seguir a orientação do meu colega... Fui a outros três psiquiatras. Embora pagando caro, também tive de esperar. Com palavras diversas, disseram vices e versas. Desejo desesperado de devenires... Confiar em alguém. Não confiar em ninguém. Indiferente. Só não era indiferente o ter de escolher. Inferno... essa bifurcação de caminhos, por um dos quais tinha de ir. Entro numa igreja, e pego o renque do confessionário. Meu filho você deve estar muito doente também da mente. Já viu uma fila de miseráveis, aguardando, na madrugada, uma vaga para uma mísera consulta? Eu próprio tenho plano de saúde e espero há mais de cinco meses uma vaga para operar uma simples fimose... Uma cirurgia deste porte é quase uma loteria... Vá em paz e não tornes a pecar. Saí do templo propenso a seguir o conselho do padre. Afinal, desde a mais tenra infância fui assim condicionado. Mas a atmosfera estava doente. Emanações escuras e malcheirosas provindas do espaço nublado envolviam a cidade e a minha alma, como um imenso capuz mal lavado. Ao respirar aquele lixo vaporoso, a hesitação retornou. Embrulhei meu que fazer em não sei quê e andarilhei buscando desembrulhar um que fazer alheio. Chovia. A chuva d'água chapinhava sobre o chão e outra chuva de chamas chamuscava-me o coração. O tempo do céu prometia tempestade, enquanto o meu próprio tempo se esvaía. Deparo com um mendigo. Não costumo dar esmolas. Mas sinto um impulso de atirar uma moeda à bacia. Deus te proteja. Deus te dê uma boa sorte. Deus te defenda de confiares a vida a alguém... Entro numa farmácia. Peço para falar ao farmacêutico. Amigo, fique tranquilo. Todos os dias pessoas se operam. Quando não há qualquer errância, nada acontece. Eu mesmo já fui operado. A única consequência indesejável foi esta ânsia de vômito permanente... Desculpe-me. E correu para o toalete. Um cliente entrou na conversa. O senhor conseguiu vaga pra se operar? E está em dúvida? Quer me ceder o lugar? Vamos negociar... Posso lhe pagar; o senhor aguarda na minha vez... Só faltam nove meses... Êpa, sendo assim negocie comigo. Só faltam oito... Comigo, então. Só faltam seis meses. E pago bem... Enquanto isso, passava lentamente um carro funerário. Várias pessoas acompanhavam a pé. Morreu de quê? De operação... Nada mais era real, nem imaginário. Todo o meu ser transcendeu a essa insignificante bipolaridade. Sonho e realidade não faziam mais qualquer sentido. Encontrava-me na quarta dimensão. Meus pensamentos habitavam uma mente cósmica. E intentavam tecer ideias que nunca se entreteciam. Sinto mais do que percebo. Minha consciência fez parceria com o caos primordial. Embriagado de sem saber, volto pra casa. Antecipado de medo, desdurmo. São quatro da manhã de sexta-feira. Tenho nas mãos uma guia de internação. Devo chegar ao hospital às cinco. Ainda não resolvi... Nem hei de resolver. Prefiro deixar-me cair deste nono andar... É o que vou fazer agora... Piso a janela. O interfone toca insistentemente. Nem sei por que atendo. Dois envelopes. Um dos quais, urgente e recomendado. Dentro deste, um recado do cirurgião: "Não precisa mais vir se operar. Desculpe-nos pelo engano. O doente era outro". O segundo era um álbum parecido com um convite de formatura. Daqueles luxuosíssimos. Típicos de faculdades caras...

(08/06/2006)

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