Vinte e quatro de Dezembro de 1952. Isto não é uma carta. Nem
um conto. É uma história real. Não se sabe bem se foi falta
de dinheiro ou de vaga num hotel. O certo é que teve de pedir arrancho
na casa de parentes não muito próximos. Casa antiga, um tanto
pobre, mas acolhedora. Um quarto só para ele. Rede e lençol limpinhos.
Cheirosos. Um jarro antigo, com água, para as abluções.
Jarro de estimação e de valor. Porcelana da boa. Foi muito mais
bem recebido do que imaginava. Tratado como um príncipe.
À noite, não faltou a Ceia. Era uma tradição. Bolos,
assados, doces e castanhas de caju. Ele era louco por pernil de porco. E as
tias e primas insistindo que comesse muito mais. Era um hábito antigo
daquela gente: seu jeito de agradar. Não se fez de rogado. Comeu como
nunca. Comportou-se quiném o animal que acabara de devorar.
Passava da meia noite quando todos se recolheram. Lá pelas tantas a coisa
começou. Veio aos poucos, uma dorzinha de nada. Aqui, acolá. Mas
foi se acentuando. E logo as cólicas pareciam punhaladas. E junto com
elas, uma vontade incontrolável. Tentou se conter. Naquele tempo, banheiro
dentro de casa era raridade, artigo de luxo.
Estava escuro e não foi fácil encontrar o interruptor. Luzinha
fraca. Lâmpada de vinte velas. Economia de energia. Procurou um urinol
do mesmo modo que um asmático grave busca o ar. Não encontrou.
As cólicas aumentavam. Os puxos eram cada vez mais fortes. E ele tinha
absoluta certeza de que se tentasse atravessar o corredor e enveredar para o
quintal na busca da casinha, não ia dar tempo. Ia ser um rastro de vergonha
pela casa toda.
Foi quando avistou o jarro. Pensou, já desesperado: "Se há
um jarro certamente haverá, pelo menos, uma bacia". Não havia.
As primas esqueceram. A essas alturas, não pensava em outra coisa: agachar-se.
Aonde quer que fosse. Nestas ocasiões desaparece a vergonha. E junto
com ela vão valentia, raiva, medo, remorso, tristeza, alegria, ambição,
orgulho, amor, tesão... Nada supera a urgência biológica.
Não tem fé, esperança e caridade que resistam . É
onde o pobre e o rico se igualam. E ele, rei sem trono, choramingava: "Meu
reino por um penico!"
Mas não havia penico. Nem onde e como procurar. Só restava aquele
jarro de porcelana... Herança passada de pais para filhos durante umas
quatro ou cinco gerações. Ainda procurou reservar um pouco da
água em outro recipiente, pensando no depois. Tudo inútil. Teve
que esvaziar o líquido mesmo no chão. Acocorou-se. E com humildade,
encheu a preciosa peça de museu. Até transbordar.
A porta da frente, ele conhecia. Aos primeiros raios da aurora, abriu, saiu
e deixou encostada. Nunca mais pôs os pés naquela casa. Nem naquela
cidade.