A Garganta da Serpente
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O Natal do Velho Escritor

(Raymundo Silveira)

"Faz muito tempo que acabaram, para mim, crises existenciais do tipo 'origem e sentido da vida'. Conhecer a minha procedência é tão importante quanto lembrar o que comi ontem no jantar. Meu destino como, indivíduo, interessa menos do que saber se amanhã de manhã choverá ou brilhará o sol. Meu gato e eu temos as mesmas preocupações quanto a nossa função aqui na Terra.

"Minhas cogitações são bem mais elementares e imanentes. Por exemplo: Por que escrevo? Já vi centenas de autores responder a esta indagação. No final deste texto, direi a minha resposta".

O velho escritor fez uma pausa. Sentira um repentino surto de esterilidade criativa. Aquilo a que os poetas chamam falta de inspiração. Ele não acreditava nisso. Estava convencido de que inspiração era um estado de espírito que dependia do humor e do esforço do criador. Os minutos sem escrever lhe deram razão. Depois de desviar, por alguns instantes, o pensamento para questões mais prosaicas, continuou:

"Sinto-me estranho quando ouço dizer que estou dentro de casa. Fora e dentro são, para mim, ideias completamente diferentes do que são para os outros. Fora, não é nada do que está para além das paredes do meu quarto. Do mesmo modo, dentro, não é o que se passa no interior da minha casa. Fora, é tudo o que acontece à minha volta. Seja no meio da rua ou no meu banheiro. Dentro, somente os meus sentimentos... As minhas emoções".

Uma nova crise de carência criativa. Levantou-se e foi para a sacada. Permaneceu durante mais de uma hora, imerso num mar de pensamentos. E, embora já estivesse vivendo de sono, voltou a escrever:

"Não adianta. Bem que me esforço. Sou imune a essa febre epidêmica do Natal. Para mim, uma noite que pesa como chumbo. Uma data festiva qualquer, não passa de um obstáculo onde o deslizar monótono das águas barrentas de um rio se encrespam. Daqui de cima, assisti com um misto de ironia e compaixão, ao comportamento das pessoas. Em frente, há um posto de combustível enfeitado de piscantes luzes coloridas. São vaga-lumes perdidos na noite de um matagal cuja árida vegetação oscila ao sabor da ventania.

"A quantidade de automóveis é bem maior do que num dia comum. Os engarrafamentos são enormes. As buzinas não cessam. Fico a imaginar o que se passa nas cabeças dos seus guiadores. Quantos se sentirão felizes? Nenhum, por certo! Do contrário não vagueariam à toa. Quantos estarão serenos? Pouquíssimos. Talvez um em mil, se tanto. Impossível alcançar serenidade em meio a tamanho caos. Então, para onde irão? Para todos os lugares e para nenhum. Concluo com uma lógica implacável.

"Passou pela calçada um velho vestido de vermelho. Usava botas e tocava uma sineta. E estava cercado de meninos a quem distribuía bombons. Há muitos anos assisto a cenas iguais. Quando era criança, tinha certeza que se tratava de papai Noel. Lembro, claramente, que ia com minha tia ao Correio, postar uma carta pedindo presentes. Até quando tinha seis ou sete anos, acreditava que a lenda era verdadeira. Hoje, é a imagem de um palhaço de circo barato. Mas de ingressos caríssimos.

"Escuto muita gente grande dizer que sente saudades. Não sinto nenhuma. Sempre detestei ser burlado. Naquela época era com papais noéis que me enganavam. Ao me tornar adolescente, queriam, e quase conseguiram, me enganar com outros mitos. Que, no fundo, são os mesmos".

Não estava apenas com sono. Havia também um cansaço do tamanho da Via Láctea. Levantou-se novamente e foi ao toalete. Olhou o espelho. Havia muito tempo que não fazia. Assustou-se com o que viu. Há uma espécie de satisfação mórbida quando vemos as marcas do tempo no semblante dos amigos. Contudo, dificilmente achamos que o mesmo acontece conosco. Sobretudo, quando não temos o hábito de consultar um espelho. Teve uma súbita sensação de que durante toda a juventude fora sempre um enfermo grave sem doenças. Ao sentar para continuar escrevendo, encontrou uma gota de água sobre a escrivaninha. Tocou com a ponta do indicador e provou. Era salgada como uma lágrima.

"Ainda não encontrei explicação para a euforia postiça e a falsa solidariedade do Natal. Por enquanto, tenho uma teoria. Os homens sempre foram e continuam cada vez mais desesperados. Um desespero silencioso que os escraviza durante o tempo todo. Então, essa histeria não deve passar de uma válvula de escape. Uma mistura de telenovela e carnaval globalizados. Somos poetas frustrados que necessitam de folia e de aplausos para ocultar as frustrações.

Para afugentar o tédio dessa mesmice coletiva, tento escrever. Mas, por que escrever não é também uma mesmice? Que ou quem me dá o direito de julgar? Eis o aparente paradoxo com que deparo. Curiosamente, a resposta é simples: quando escrevo não sinto tédio. E pronto. Não preciso de nenhuma explicação complicada. Essa me basta".

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