O automóvel roubado rodava lentamente. Dentro dele, oito homens se espremiam.
E examinavam. Escolhiam. Como quem faz compras num shopping. "Aquela parece
ideal". "Não! Muito próxima das outras. Tem de ser igual
a ela, mas isolada... Pronto. É aqui!" Saltaram sete. Cada um portava
um fuzil AR 15.
A família estava toda reunida. Antes, nunca tinham estado juntos como naquela
noite. Havia, inclusive, os dois filhos casados que moravam nos Estados Unidos,
as mulheres (americanas, que não conheciam o Brasil) e os filhos. Ao todo,
vinte e cinco pessoas. Dez crianças e oito mulheres.
"Pé-de-Burro, tu vai ficar esperando. Não desliga o motor.
Se notar algo suspeito, dá três buzinadas. Cobra Cega, tu vai olhar
as pessoas, por aquela janela. Conta todas. Quantas crianças, quantos homens.
Vê se descobre se há algum armado. As mulheres qui tu quiser (e puder),
depois pode pegar. Perigoso, tu fica vigiando a parte da frente. E tu, Malvadeza,
a detrás. Eu, o Burro Brabo e o Infeliz, invadimos. Vocês três
só entram quando começar a "festa". Eu aviso. Com um tiro.
E não vou estragar munição. Portanto, já vão
sabendo que haverá um a menos. Entenderam?"
Uma das mulheres estava grávida de oito meses. Chegara a hora da troca
de presentes. No canto da sala, um CD player tocava "White Christmas".
Cobra Cega viu e ouviu tudo. E esboçou um ar de riso. Ele conhecia o título
da canção. Seu sorriso era de pura ironia. A gestante foi ao banheiro,
urinou, enxugou-se e percebeu uma discreta mancha escura no papel. Enxugou novamente.
Estava limpo. Não se preocupou mais.
Os marginais puxavam fumo e aguardavam que o outro terminasse a contagem e o exame.
Cobra Cega checou três vezes. Não havia dúvida: vinte e cinco.
Sete homens: seis mais jovens e um aparentando entre sessenta e cinco e setenta
anos.
A grávida sentiu uma leve umidade escorrendo pelas coxas e voltou ao banheiro.
Desta vez havia uma mancha de sangue na calcinha. Apavorada, correu para o salão
da festa e chamou o marido.
Cobra Cega já ia saindo para avisar o que presenciara, quando resolveu
fazer mais uma checagem. Vinte e três. Franziu a testa e contou de novo.
Faltavam um homem, dos mais jovens e fortes, e uma mulher. E esperou. "O
quidiabéqui o Cobra Cega faz tanto ali? Já tinha
dado tempo ele contar até um batalhão. Só se ele tá
suspeitando qui tem alguém armado... Vai lá Burro Brabo. Pergunta
se ele cegou ou tá brechando alguém fodendo, ou... Sei lá.
Diz a ele que ande logo com isso..."
Deitada de costas, as pernas encolhidas e entreabertas a mulher expelia uma quantidade
enorme de sangue. Dali mesmo o marido telefonou para o médico. "Está
sentindo dores? Contrações?" Não estava. "Deve
ser uma placenta prévia. Ligue para a Maternidade imediatamente e peça
uma ambulância. Rápido. Estarei lá dentro de quinze minutos.
A quantidade de sangue aumentava cada vez mais..."
"O quéquitufaztantaí, Cobra Cega? O Caga
Fogo já tá puto contigo e..." "Péra! Deve tá
acontecendo uma coisa muito errada. Tinham vinte e cinco pessoas na sala. Agora
só tem um velho e as crianças. O resto correu tudo lá pra
dentro". "Arre égua, macho. Faz quais uma hora qui tu tá
aí e ainda num deu conta de contar as merdas duns filhos de puta e..."
Já havia dois lençóis encharcados de sangue. A mulher começava
a suar frio. A face ficando da cor de flor de algodão... Não! Da
cor do próprio algodão. A agitação dentro do quarto
a afligia cada vez mais. O sangramento agora era aos borbotões. De repente,
começou-se a ouvir um som agudo, estridente, alarmante.. Era o da sirene
de uma ambulância. Que se aproximava em alta velocidade...