A Garganta da Serpente
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Metrô

(Raymundo Silveira)

Obcecado por duas manias: observar o comportamento das pessoas e ler. Não apenas lia. Também amava, beijava e vivia livros. Algumas pessoas não passam sem estar com um nas mãos. Ele não podia ser sem um livro nas mãos. Conquanto não pudesse estar lendo naquele instante. Era um sem idade. Podia ter sessenta ou quarenta. No primeiro caso, um velho precoce. No segundo, um jovem amadurecido à força, que nem banana no carbureto.

Sabia pormenores da vida do rapaz franzino dos óculos de fundo de garrafa, embora este o conhecesse apenas de vista. A outra pessoa a esperar o metrô era uma moça, ou melhor, uma "Serra Pelada", cujo automóvel enguiçara. Trazia ouro até nos tornozelos. Era alta madrugada, ao embarcarem. Apenas uma pessoa no vagão: outro velho. A "Serra Pelada" escolheu uma poltrona nos fundos do vagão. O jovem sentou atrás. Numa estação suburbana, subiram três punks e um homem elegantemente vestido. Os primeiros sentaram mais adiante, próximo do leitor. O cavalheiro, ao lado da mulher.

Tem gente qui vive querendo se amostrar. Quéquiqué esse coroa lendo a essa hora, mermão? Ainda mais nesse breu... e nem enxerga direito, vai vê qui o livro tá é de cabeça pra baixo... e num se toca, pensa que tamo falando com as parede, ou intão é mouco, quem sabe, quer se amostrar de inteligente, se acha grande coisa, deve tá pensando assim: o qui vem de baixo num me atinge. É contigo mermo qui tamo falando véi nojento... ô coroa, deixa de ser maleducado, pô, num vê que tamo a fim de levar uma conversa contigo, meu? é, num tem jeito não, vamo ter qui conversar com ele mais de perto, desafasta pra lá, meu chapa, tá pensando qui é o dono do metrô, é?

Desnecessário discurso direto: óbvio que foram os punks. O que vocês querem? é dinheiro? escuta aqui cumpade, o véi tá achando qui nós é mendigo ó... me dá a merda deste livro, véi escroto, sabia qui vai levar um pau agora, pra deixar de ser boçal? Aparentemente, ninguém disposto a ajudar. Mas logo, a seguir, o cara dos olhos de fundo de garrafa se levantou. E empurrou o valentão, que reagiu com um soco. O míope chutou-lhe o joelho e aplicou um golpe no gogó de adão, deixando-o sem fôlego. Outro agressor sacou um canivete e partiu pra cima dele. Desviou-se, enquanto segurava e torcia-lhe o pulso. Em seguida, jogou-o contra uma barra de ferro. O terceiro punk entrou na luta. O jovem revidou com uma sequência de socos e chutou a cabeça, fazendo-o tombar para o lado contrário.

Ao mesmo tempo, o homem elegantemente vestido, ao lado da mulher, atacou-a arrancando as joias. Ela gritava. O lutador percebeu e abandonou a luta, correndo em seu socorro. Mas era tarde. O "cavalheiro" já havia tomado tudo. Ao tentar atacá-lo, descuidou-se dos outros três, que o puseram fora de ação com um golpe traiçoeiro. Caiu inconsciente. Era o guarda-costas, disfarçado, da "Serra Pelada". Agora, duplamente pelada. Seu principal meio de vida: dar proteção a ricaços em apuros.

Na próxima estação, os meliantes desceram. E abalaram. Cada qual num rumo diferente. Os outros passageiros prosseguiram viagem, em estado de choque. Exceto o velho ledor, que assumiu atitude exemplar: calmamente, apanhou um celular e se comunicou com o serviço responsável pelo socorro às vítimas da violência. Depois, com a polícia. E lamentou ter sido involuntariamente o pivô do acontecido. Na próxima parada uma ambulância já esperava o herói. A mulher e o outro velho desceram duas estações adiante. Ambos ainda tremiam. No final da linha, o bibliólatra também desceu. A esperá-lo, três sobrinhos e um amigo deles. Tio, na próxima vez vê se o senhor arruma um Bruce Lee menos valente, OK? aquele quais qui matou nós...

(26/09/2005)

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