No dia em que o menino nasceu, o calor demorou a aparecer. Parecia presságio,
no entanto, o parto não teve complicações. A mãe,
devota de Nossa Senhora, já tivera outras três. Todas meninas,
também chegadas na hora do frio. O pai ajudava. Quando veio a primeira,
teve aflição. Daí em diante ganhou experiência. Era
até capaz de prever o tempo que faltava, pelo tamanho da abertura. Aparada
a criança, a primeira coisa que fazia, era apalpar a genitália,
antes mesmo de cortar o cordão umbilical. Daquela vez não conteve
um grito de alegria. Sempre quis ter um filho homem. Fez-se a sua vontade. Aliás,
a vontade de todos: a mulher e as filhas também queriam um menino. Mas
o primeiro a reconhecer foi ele. As outras só ficaram sabendo ao ouvir
o alarido da sua felicidade.
A mais velha se aproximou para receber o irmão. E, ao dar banho, constatou
uma criança forte, de bom peso, do tamanho do cãozinho, que criavam
com a fartura das sobras. Radiante, apalpava os bracinhos, as pernas e beijava
cada dedo, com carinho maternal. Desenhava a face, sentindo o perfil. Depois,
limpou a boca, o nariz, os olhos, os ouvidos. E sorriu, surpresa, quando o bebê
segurou firme o seu indicador. Uma feliz coincidência, pensou. E aquela
família simples reconheceu que chegara o que faltava.
Moravam em pleno sertão . Eram autossuficientes. Plantavam e colhiam
os alimentos. Teciam as próprias roupas. Andavam de pés descalços.
Muito rezavam. O violão passava de mão em mão. A música
era o único passatempo. Preenchia o lazer, enfeitava a casa. Nada mais
faltava. À medida que o irmão crescia, as irmãs ajudavam
na educação. Ensinaram como distinguir melhor o mundo ao redor,
usando todos os sentidos. A desenvolver um raciocínio rápido.
E, acima de tudo, cultivar uma intuição, quase um sexto sentido,
que os fazia perceber a alma das coisas. Assim, desde cedo, ele aprendeu a reconhecer
cheiro de fumaça e a saber que onde ela estava, o fogo também
estaria. Cada alimento era identificado pelo sabor e pelo odor. Os utensílios
domésticos, principalmente pelo tato. Os animais, pelo som que emitiam,
pela textura da pelagem, ou das penas. Como os outros, apurou o olfato. Sentia
o prenúncio da chuva no ar. E, como eles, adorava sentir as gotas na
face, no corpo, rindo de contente, pela generosidade do seu Deus.
Contudo, aos poucos uma diferença se insinuou entre eles. O menino tinha
uma estranheza, umas alucinações, de doido, que ocorriam sempre
nas horas quentes. Apavorado, gritava à mãe que as coisas pareciam
querer avançar sobre ele. Podia senti-las, de uma maneira inexplicável,
sem pegar nelas, sem ouvir, sem cheirar, sem nada. E chorava, o pobrezinho,
agarrado a quem perto dele estivesse. E escondia a cabeça até
se acalmar. Nas horas frias, o delírio parecia dormir. E ele se aquietava.
Voltava a se comportar como todos.
A princípio ficaram bastante preocupados. Porém, com o tempo,
acabaram se habituando a conviver com essa inquietude. A vida corria simples.
Trabalho e alegria se misturavam. Andavam sempre juntos e de mãos dadas.
Tocavam guitarra, cantavam, assobiavam. A felicidade parecia morar ali.
Entretanto, a criança sofria a diferença, calada. E pedia a Deus
que o livrasse da tormenta. Desesperado, passou a praticar atos, que faziam
diminuir as aparições: voltava o rosto, o mais que podia, em direção
à fonte de calor. E assim ficava, além do suportável. Aquilo
era uma tortura. Mas, permitia um certo tempo sem a angústia das ocorrências.
No mais, vivia esperando o tempo passar depressa, para chegar logo a hora do
frio. Não suportava ficar sozinho a não ser quando o sereno caia,
uma brisa fresca soprava e aquela quentura infernal desaparecia. Só então
ele se sentia igual aos pais e às irmãs, pois as miragens desapareciam.
Enquanto isto continuava esperando um milagre. O fim daquelas odiosas sensações.
A salvação veio de uma descoberta ao acaso. Era o tempo das novenas
da Padroeira. Maio, "fins d'água". Foi um detalhe tão
simples, tão fácil, mas, que mudou seu entendimento da vida. Começou
no fervor da oração, quando, compenetrado, se entregava de coração
ao louvor da Santa. Percebeu que quando fazia isso, mesmo durante o período
quente, como num passe de mágica, deixava de ter as temíveis alucinações.
E fez deste hábito o seu ideal. Adotava rotineiramente aquela atitude.
O quanto suportasse, obstinadamente, com a certeza de ter encontrado o caminho.
E, quanto mais praticava, mais se igualava aos outros e mais realizado se sentia.
Até que, finalmente, chegou à perfeição de conseguir
permanecer de olhos fechados e enxergar pra sempre a escuridão.