A Garganta da Serpente
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Feitiço Diabólico

(Raymundo Silveira)

Não. Não foi pouco a pouco. Longe disso: o terror tomou conta de mim, de repente. Lembro bem. Foi no dia em que Nossa Senhora de Fátima chegou na minha aldeia. Eu tinha doze anos. Lembro também que todos esperavam um milagre: a cura do Duquinha. Que tinha um aleijão muito raro, além de ser surdo-mudo. Emitia apenas um ruído parecido com tudo, menos com voz humana. Por isso, a comunicação com ele era adivinhada. Todos já sabiam: "dê-me uma esmola pelo amor de Deus".

Locomovia-se com dificuldade, à custa de muletas. Era portador de uma lordose tão acentuada, que o arco formado nas costas entre a cabeça e os calcanhares, configurava quase um ângulo reto. Nem sempre foi assim. Desde quando nasceu e até os 32 anos, era uma pessoa normal. Numa incerta noite foi dormir sadio, como um novilho em véspera de corrida de toros, e amanheceu aleijado.

Dizem que tinha sido o resultado dum feitiço requerido por um desafeto, e deferido pelo demônio, em pessoa. Com quem aquele haveria pactuado a troca da alma pela aquisição de determinados poderes. Entre estes, o de causar o mal a quem bem entendesse. Chamava-se Chico Gazo. Era um sujeito esquisito... Metido consigo mesmo. Vivia sozinho num casarão com fama de mal-assombrado. Ninguém sabia qual era a fonte de recursos da sua subsistência, apesar de ostentar um padrão de vida muito alto. Gazo não era o verdadeiro sobrenome, mas apelido. Por conta da pele e dos pêlos sem pigmentação, exceto pela presença de pequenas sardas disseminadas pela face e pelos braços. Só trajava e calçava roupas e sapatos brancos. O que lhe valia também a alcunha de doutor macumbeiro. Mas ai daquele que dissesse isso na sua presença.

Não se sabe ao certo o motivo da rixa. Parece que se tratava de algo envolvendo "bicho de saia". Era assim como o Gazo tratava as mulheres. Quando tava com esquentamento costumava dizer: "por enquanto num posso comer bicho de escama, bicho de lata, bicho de pena, nem bicho de saia". Acredita-se que não comia este último, quer estivesse ou não com esquentamento. Pois todas as mulheres tinham muito medo dele. Até as putas. Ainda assim, era apaixonado pela Eloísa, minha prima, que namorava o Duquinha desde criança. Já estavam de casamento marcado, quando aconteceu a desgraça. A partir daquele dia, minha prima nunca mais quis ouvir falar no noivo. Também jamais deu confiança ao doutor macumbeiro, que continuou odiando o Duquinha mesmo depois do feitiço.

Em Outubro de 1954 tinham se passado pouco mais de dois anos desde quando o Duquinha tinha ficado aleijado. Naquela época peregrinava pelo Nordeste a imagem de Nossa Senhora de Fátima de Portugal. Por onde a santa passava ia deixando um rastro de milagres. Iam da cura de cego de nascença até fazer vereadores e deputados trabalharem. Na igrejinha da minha aldeia, a população em peso se reunia todas as noites pra assistir a novenas e entoar cânticos em louvor à Virgem, enquanto ela não chegava.

O Duquinha não perdia uma novena, pois era o primeiro candidato na fila de espera dos milagres. Justamente porque, sendo o aleijão obra do capeta, somente a santa seria capaz de exorcizar o dito cujo e reverter a bruxaria. Gazo, quando soube disto, comentava abertamente para quem quisesse ouvir: "é mais fácil eu virar uma mula parida do que ele ficar bom. Meu 'santo' tem mil vezes mais poder do que esta santinha mixuruca dele". Todas as sextas-feiras à meia noite, enquanto os fiéis ainda cantavam hinos à Virgem de Fátima na igreja, Gazo se ajuntava com o Cobra Preta, também metido a fazedor de despachos. E seguiam juntos para uma encruzilhada. Diziam ser o local onde se encontrava com o seu chefe, padrinho, patrão e futuro proprietário da sua alma. Para que diabo o diabo queria a alma do Chico Gazo, era o que todo mundo se perguntava.

Quando voltavam do encontro com o padroeiro, Gazo e Cobra Preta ficavam bebendo pinga na bodega do Toim Barrigudo e reiterando o desafio à Santa: "se ele ficar bom eu viro uma mula parida". E escumavam pela boca uma baba escura, da cor de abacate podre. Dos olhos faiscavam umas labaredas. E também eliminavam, pelos buracos das ventas e dos ouvidos, uma fumaça preta fedorenta a enxofre.

A Santa veio, a multidão aclamou com hinos e orações. Rezaram-se missas, ladainhas e centenas de rosários. Mas o Duquinha continuou aleijado e surdo-mudo. O Chico Gazo e o Cobra Preta sumiram da face da Terra como se tivessem sido corroídos num poço de ácido muriático. Diziam terem descido aos infernos com corpo, sangue, alma e diabidade.

Mas os leitores devem estar curiosos pra saber o que tem a ver essa história com o terror que me acometeu subitamente como declarei, com tanta ênfase, no começo. Como poderia esquecer? Foi naquele dia, em que Nossa Senhora de Fátima chegou na minha aldeia, que fiquei menstruada pela primeira vez. E eu não sabia de nada. Achava que tinha sido obra do padrinho do Chico Gazo...

(12/07/2005)

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