A Garganta da Serpente
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Um Estranho Natal

(Raymundo Silveira)

É curioso convivermos a maior parte da existência com criaturas que nos são antipáticas. E tão pouco tempo com quem gostamos, de fato.

De cinquenta e sete anos, estudei vinte e seis. Passava quase metade do meu tempo na escola. Embora hoje sinta muita gratidão, tinha uma espécie de ojeriza a todos os meus professores. Sem motivo algum. Apenas pela circunstância de que lhes era subalterno. Sempre fui antiautoritário.

E segui remoendo contrariedades. Aos chefes, a obediência. Com colegas, competição. Os subordinados, com certeza me detestavam, assim como eu aos patrões.

Quase não via os entes a quem amava. Exceto minha esposa. O tempo, a rotina, a convivência obrigatória, se encarregaram de destruir a boa intenção.

Meus filhos, esses amarei sempre, cada vez mais. E contudo, permiti que a vida nos afastasse. De manhã, quando saía, eles ainda dormiam. À noite, quando chegava do trabalho, dormiam. Depois, casaram. A partir de então, os vejo cada vez menos.

A vida em comum não apenas brutaliza as relações como as torna indiferentes. De todas as minhas lembranças a mais angustiante convivência, a mais difícil foi com ele.

Ao comer, metia medo. Punha na boca a extremidade do pão e a dilacerava, arrancando ferozmente, com as mãos, o coto remanescente. Não mastigava: antes de engolir, supliciava os alimentos com a prensa intermitente da dentadura. E ficava vazio de pensamentos. Ele os espantava como fazia com as moscas, que sobrevoavam o prato. Inútil tentar conversar. Mais fácil ver um gato sorrir.

Então, espero pacientemente. Apesar da urgência em lhe falar. Assunto muito delicado. Nem sei como abordar. Então, em vez dele, penso eu: O que faria se estivesse em seu lugar? Lembro a adolescência e a juventude. Quase sempre estivemos juntos. Não exatamente, amigos. Sequer identidade de ideias. Apenas uma certa convergência de interesses. Laços de necessidade, embora esgarçados de amizade, ataram nossas vidas.

No tempo em que convivia com este homem, que come enquanto espero, adoraria levar-lhe a notícia desagradável que estou preste a transmitir. Os modos dele à mesa, antes me causavam engulhos. Agora, no entanto, que não o vejo há anos, sinto compaixão. Ele abotoa e desabotoa aquela bocarra asquerosa, por onde entram montanhas de comida. E não sinto nada. Além de piedade...

Não sei como eu mesmo reagiria a isso que tenho para lhe dizer. Também já sofri muito. Quando descobri que meu irmão se picava e que passava base pra esconder, eu estava na piscina do clube... Mergulhei e minhas lágrimas se misturaram à água por quase uma hora ... Chorar dentro da água, com a cara na água... É estranho. Ao mesmo tempo reflito: nem todos reagem da mesma maneira a uma tragédia.

A noite de amanhã será a de Natal. Até hoje não entendi essa comoção coletiva que acontece nessa data. Certamente, os meios de comunicação têm uma certa influência. Mas não é só isso. Quando eu era criança, não havia meio de comunicação algum, além de um arremedo de rádio a bateria. E a mudança no comportamento das pessoas era igual.

Pensar que amanhã será véspera de Natal torna ainda mais difícil a minha missão. Devo ser direto e objetivo? Dizer tudo de uma vez e me livrar logo dessa carga? Ou contar aos poucos? Ponho-me no seu lugar. Para mim não faria diferença. Decido pela primeira alternativa. A dor não deixaria de ser a mesma se amputassem o meu braço lentamente ou de um só golpe. Pelo contrário. A perícia dos cirurgiões antigos, quando não havia anestesia, era mensurada pela rapidez com que executavam seu trabalho. Deve se dar o mesmo com a dor psíquica.

Engraçado. Uma estranha livre associação me ocorreu agora. A vontade que sinto de pôr pra fora o que tenho para dizer àquele sujeito me faz sentir diferente. Algo assim como se fosse parir e outra pessoa sentir as dores.

Estou-me sentindo ainda mais esquisito. Um véu de mistério começa a me envolver. Devo estar ficando louco. Estou observando melhor aquele homem. Não. Não é a pessoa que eu imaginava. Não tem nada dele. É muito diferente. Ao mesmo tempo trata-se de alguém muito chegado a mim. Aqueles gestos grotescos à mesa. Aquela fisionomia. Aquele bigode... Pronto. Ele acabou de se levantar. Não resta mais a menor dúvida. Aquele homem sou eu...

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