De um modo ou de outro, todos os vícios capitais dão algum prazer
ao pecador, exceto a inveja. O soberbo goza a sua vaidade ou o seu orgulho,
quer possua ou não as qualidades que se autoatribui. O avaro não
chega a usufruir da sua fortuna, porém o simples prazer de a possuir
não deixa de ser um ideal concretizado. O luxurioso é, sem dúvida,
aquele que imediatamente melhor se beneficia do seu pecado, porque, dos prazeres
materiais, é o carnal aquele que mais gratifica o pecador. O irado, conquanto
sofra mais tarde as consequências da sua ira, não deixa de
extravasar uma violenta emoção que o estava a consumir e, portanto,
pelo menos a curto prazo, sentirá um certo alívio. O preguiçoso
sobrevive, de uma maneira ou de outra, sem o menor esforço físico
ou mental. Todavia, o invejoso sofre para sempre os gravames e as sequelas
do seu pecado e, paradoxalmente, o personagem alvo da sua inveja é, na
verdade, o verdadeiro beneficiário. Afinal, se há motivos para
despertar inveja, obviamente há qualidades a serem invejadas.
Alberto Camurupim sentia uma vontade louca de escrever. Passava horas, manhãs,
dias inteiros debruçado sobre a sua Remington, último modelo,
tentando redigir uma página que fosse. Mas nunca passou do título.
Quando tentava esboçar as primeiras frases, estas não se materializavam,
não tinham nexo algum, eram sentenças, no mínimo, ridículas,
cheias de solecismos, cacófatos, lugares comuns. "Quando o sol raiou..."
E não saía mais nada. Retirava a folha; amarrotava-a, punha outra.
"Quando os primeiras réstias do sol d'aurora penetraram no meu quarto,
pensei na mulher querida e vi do quanto sou capaz por amar ela..." Somente
depois de muito ler e reler esta sentença, despertou para o cacófato
e para o erro gramatical na colocação do pronome. Retirou o papel,
amarfanhou-o com raiva e pensou em tentar mais uma vez. Depois achou que tivera
uma excelente ideia: "Como não pensei nisto antes? Por que
não citar um trecho no original do 'Romeu e Julieta' na epígrafe?"
Além de achar que estaria a salvo de erros, teria a chancela de ninguém
menos do que o maior poeta de todos os tempos. Mas não sabia os versos
de cor. Procurou na estante, abriu gavetas, desarrumou livros durante mais duas
horas e nada de encontrar o trecho do vate de Stratford-on-Avon. Decidiu, então,
citá-lo de memória. Os versos que ele escutara alguém declamar
num sarau onde esteve de penetra eram estes: "But soft! What light throug
wonder window breaks! It's the east, and Juliet is the sun!" Mas o que
saiu foi isto: "Bala soft! What leite wonder o índio disse! Isto
é a Julieta my son!" Achou que estava muito bom. Afinal de contas,
pouquíssimas pessoas em sua cidade liam mesmo qualquer coisa em inglês.
Até que enfim conseguira produzir algo digno de um escritor e já
imaginava o seu texto, com o nome dele acima do de William Shakespeare, impresso
no maior jornal da sua terra. Mas precisava de algo mais original para o texto
em si. Estivera lendo Machado de Assis e o impressionou particularmente esta
frase: "Não imagina como eu aborreço as cópias. Fazer
o que muita gente faz, que mérito há nisso?" Matutou durante
umas duas horas e então uma ideia luminosa apareceu. "Por
que nasci homem? Que circunstância aleatória teria feito de mim
um ser humano e não uma barata? Talvez sendo um inseto minha vida tivesse
mais sentido..." Excelente! Cogitou. Com um pouco mais de imaginação
estarei construindo uma imagem originalíssima de que somente Kafka seria
capaz. Gastou o resto daquela tarde, todo o dia seguinte e parte da noite a
pensar, a queimar as pestanas, a buscar inspiração. Ao se recolher
estava exausto. E as suas malogradas tentativas não passaram daquilo
mesmo. Sobreveio-lhe então uma frustração intensa. Um profundo
sentimento de autopiedade e de revolta contra escritores que, segundo ele, não
teriam a metade do seu talento. Jurou se vingar e concluiu que a sua vingança
não poderia jamais chamar atenção para a sua inveja. Teria
de ser sutil, respeitável, elegante. Teria de se concretizar sob a forma
de uma imparcial Crítica Literária.
Não suportou esperar que "as primeiras réstias do sol d'aurora
penetrassem no seu quarto." Escolheu, ao acaso, um texto numa página
literária de um jornal e matraqueou na Remington: "Falsos Escritores:
Uma Praga Nacional" por Alberto Camurupim. "Certos indivíduos
petulantes se metem a escrever sem o menor pudor; sem a mínima consciência
de que estão a cair no ridículo. Atentem para este texto. Para
início de conversa o autor escolheu um título macabro, espalhafatoso,
certamente por acreditar que uma pretensa originalidade atraísse a atenção
dos leitores. Pois o título desta matéria digna do pior pasquim
é nada menos que 'Cemitérios'. E começa com esta frase
óbvia, digna de uma 'obviedade ululante', parodiando o nosso Nelson Rodrigues
e de uma pasmaceira acaciana, parafraseando o genial Eça de Queiroz.
'Nada conheço mais lúgubre do que a cidade dos mortos ao pé
do Cairo, na base de Mokattam. É um cemitério.' Ora, não
contente com a obviedade já referida, o escrevinhadorzinho ainda tenta
se passar por globetroter. Quer dizer que já esteve no Cairo. Que conhece
o Cairo. Quanta petulância, presunção, cabotinismo! Talvez
nunca tenha posto os seus pés além dos arredores do lugar onde
nasceu. Certamente ele quer se passar por viajado por ouvir dizerem que ser
viajado 'é mais importante do que ser culto, mais interessante do que
ser inteligente e quase tão bacana quanto ser rico.' Prossegue o nosso
'eminente' escrivão de viagens imaginárias, letras mortas e pretensões
vivíssimas: 'As novas pedras tumulares, brancas e lisas, assentam ao
pé das velhas sepulturas históricas dos Mamelucos, dos Xeques
respeitados na tradição, e dos Príncipes.' O que será
que este panfletário prepotente de aldeia quer dizer? Se acaso as novas
pedras tumulares não fossem brancas e nem lisas fariam alguma diferença?
Apenas uma mente estéril, ociosa e com a imaginação de
um símio seria capaz de criar imagens tão insípidas e insignificantes.
Mas isto não passa de sinal dos novos tempos. Hoje em dia, todo pé
de chinelo que mal sabe desenhar o próprio nome, se diz escritor. Ninguém
mais neste país sabe fazer outra coisa. Isto aqui virou uma nação
de 'literatos' que pensam ser o ofício de escrever um passatempo de vagabundos
ou uma vulgaridade. Todavia, o que chama mais atenção em 'Cemitérios'
é a tragicomédia da conclusão. Demais das obviedades já
mencionadas no início deste texto, surgem também palavras incompatíveis
umas com as outras. Os substantivos são inimigos figadais dos adjetivos:
'beleza bárbara', 'violências imóveis', e o mais hilário
de tudo, 'o peso do sol'. Seria cômico, se não fosse da mais pura
imbecilidade. Vejam o trecho: 'Tudo ali é impenetrável, quieto,
mudo, eterno: o ar, o céu, os túmulos. (...) E tudo está
morto e imóvel como uma grande violência (SIC). (...) Caminhamos
calados sob o peso do sol'. Presumo que seria insultar a inteligência
dos leitores se me metesse a comentar estes disparates." Camurupim retirou
o papel da máquina, releu, corrigiu pequenos erros de pontuação,
assinou e levou ao jornal. Como este não aceitava publicar, a menos que
se tratasse de matéria paga, ele despendeu uma fortuna, mas exigira que
o seu texto saísse na primeira página com o título da matéria
e o seu nome em destaque. Não dormiu naquela noite. Esperou de olhos
arregalados que as "primeiras réstias do sol d'aurora penetrassem
no seu quarto". Levantou-se ainda com escuro a fim de apanhar com o porteiro
do prédio, o seu exemplar do "Jornal Do Comércio". Acendeu
a luz do abajur e, casualmente, viu o recorte da página onde estava estampado
o "Cemitérios", por ele tão duramente criticado. Só
então tomou conhecimento do nome do autor, inserido em letras miúdas
no final do texto. Tratava-se de ninguém menos do que Eça de Queiroz.