Nada na vida é tão cruel quanto a desesperança. A pobreza
convive com as humilhações e estas com o infortúnio, com
a tragédia e até com a mais catastrófica das desgraças,
desde que um alento mínimo de confiança no porvir - mesmo sob
o envoltório tênue de remota ilusão -, ainda permeie o espírito,
ou qualquer outro nome pretendido para designar a consciência humana.
Jorge Eduardo encontrava-se em Londres num dia de Maio de 1998 e estava desesperado!
Desde as oito da manhã perambulava sem destino certo pela Oxford Street
sem denotar o mínimo interesse por nada à sua volta. Chegara à
capital inglesa em Fevereiro daquele mesmo ano, recém-formado em medicina,
a fim de cursar mestrado na universidade local.
Um dos primeiros de sua turma, fluente em inglês, superou poucas dificuldades
para conquistar bolsa de estudos custeada por Sua Majestade, a Rainha. Os primeiros
dois meses transcorreram quase serenos, exceto pela saudade de sua família,
de seus amigos, dos hábitos e do dia a dia de sua pátria. Com
o passar do tempo, porém, esta saudade foi-se agravando, catalisada pelas
diferenças culturais, pelo clima e, sobretudo, pela ausência de
calor humano.
Aos poucos se transmudou em profunda melancolia seguida por uma extrema indiferença
pela vida. Abandonou não só os estudos, como também tudo
aquilo que motiva o ato de viver. Não diria apenas o interesse pelos
acontecimentos normais de um mundo repleto de comunicações, distribuídas
por uma mídia ubíqua como esta de final de século XX .
Refiro-me às pequenas ações necessárias e até
indispensáveis à vida comunitária como lavar-se, escovar
os dentes, vestir-se, barbear-se, em suma, cuidar da higiene corporal. À
luz de seu próprio raciocínio, frio, do mais puro materialismo
niilista, de uma lógica tão contundente a ponto de fazer corar
não apenas a Nietzsche como também ao próprio Martin Heidegger,
Jorge Eduardo encontrava-se coberto de razão.
Que sentido poderia haver em matar-se de estudar, lutar, competir? Como atribuir
importância ao sucesso, à fama, ao dinheiro, à glória,
enfim, se tudo resultaria mais tarde ou mais cedo na aniquilação
total? Qual a diferença entre morrer agora, à noite, amanhã,
daqui a alguns meses, um ano, dez, vinte, trinta ou sessenta? Ponderando tudo
racionalmente, não seria mais vantajoso acabar logo de vez do que insistir
numa batalha inglória, cujo resultado seria uma derrota definitiva; um
final irrecorrível, agravado pela velhice e todo o séquito de
mazelas: angústia, diminuição da acuidade dos sentidos,
dores terríveis, doenças degenerativas, solidão, quem sabe,
a miséria?
Com o humor neste tão raso nível apanhou o "tube" na
estação de Holborn, depois cogitou descer em Marble Arch (sem
saber bem por quê ou para quê, apenas cogitou), apeou em Notting
Hill Gate, fez conexão para a Circle Line onde permaneceu reiterando
uma viagem, tão aleatória quanto inútil, até às
nove da noite quando, finalmente, saltou na Victoria Station, onde se atirou
à frente da locomotiva de um trem que partia para Newhaven, tendo morte
instantânea.
O Quociente Intelectual de Amaro de Brito não era o mesmo de Albert Einstein.
Não, não era; mas se aproximava bastante. Por outro lado, sua
"inteligência emocional" ou o que quer que isto viesse a significar,
encontrava-se num nível bem abaixo daquela atribuída pelos historiadores
a Edgard Alan Poe. Essas comparações são imprescindíveis
se se quiser entender o remoinho de contradições a entremear a
sua existência. Aos oito anos deixava boquiaberto qualquer mestre de filosofia
pura ao discorrer com desenvoltura sobre Emanuel Kant, Arthur Schopenhauer,
G.W.F. Hegel ou René Descartes. Aos dez, criticava abertamente pensadores
contemporâneos como Bertrand Russel, Jean Paul Sartre ou Herbert Marcuse.
Nesta época, sua leitura predileta era Filosofia da Matemática
Pura. Aos doze, discutia longamente com doutores em física quântica,
a Teoria da Relatividade, além de solucionar e propor problemas complexos
de cálculo diferencial e integral, com o mesmo desembaraço com
que um adolescente de sua idade executava as quatro operações
aritméticas. Foi admitido na Escola de Medicina aos dezesseis - ninguém
até hoje entendeu por que cargas d'água escolhera essa profissão
-, tendo obtido nota máxima em todas as disciplinas do exame seletivo.
Durante os primeiros anos do curso acadêmico nunca abrira um único
livro, não fizera nenhuma anotação mas era o primeiro da
classe.
A única fonte de informação que utilizava para submeter-se
às avaliações eram as aulas, às quais, por sinal,
assistia com indisfarçável desdém. Certa vez ousou humilhar,
sem que isto fosse seu propósito, o lente de Estatística; ria-se
da Classificação Periódica dos Elementos Químicos
e não entendia como alguém pudesse se dedicar ao estudo de algo
tão estático e tedioso como a Anatomia. Praticava tudo isto com
uma candura franciscana. Não era um insolente, longe disto, era, ao contrário,
vítima de mórbida timidez, e os seus atos - aparentemente arrogantes
-, eram resultado de não lograr entender a razão pela qual todas
as outras pessoas não possuíam os seus próprios atributos.
Nada disto fazia dele uma pessoa feliz. Não detinha sequer o dom da serenidade;
muito pelo contrário, era portador de uma ansiedade crônica e persistente.
Aos quatro anos fora a única testemunha ocular da morte súbita
de sua mãe.
Como o pai havia abandonado a ambos logo que ele nasceu, passou a ser tutelado
por religiosos de uma severa ordem monástica cuja principal característica
era preservar um ranço jansenista herdado da inquisição
espanhola. Amaro era portador de um temperamento exageradamente extrovertido
e, como tal, de uma libido prematura e de um nível muito acima do comum.
A combinação destes fatores foi o alicerce do seu desenvolvimento
psicológico e causa definitiva de sua ruína emocional. Teve uma
iniciação sexual precoce e traumática agravada por um complexo
de culpa tenebroso a ponto de levá-lo a práticas medievais como
o uso de instrumento de autotortura como o abominável cilício.
Era obrigado a assistir a retiros espirituais onde o pregador primava em ameaçar
com o fogo eterno àqueles que se deixassem sucumbir por atos "pecaminosos"
como a masturbação e o coito, por exemplo.
Assistia diariamente a missas onde era vigiado quanto a frequentar ou não
o "banquete eucarístico", o que o deixava duplamente apavorado
mercê de um conflito insolúvel: se o fizesse, o complexo de culpa
decuplicava por estar cometendo uma comunhão sacrílega; por outro
lado, se se abstivesse, seria inquirido severamente acerca das razões
que o teriam levado a tão execrável omissão. Para resumir
sua triste história, Amaro não chegou a concluir a metade do seu
curso médico. Dez anos após deixar a escola morrera de cirrose
hepática depois de um longo inferno nas teias do vício do alcoolismo.
Terceira de uma série de doze filhos de humildes agricultores, Fidélia
Peixoto deixou sua roça para vir estudar na cidade grande, morando de
favor em casa de parentes afastados, pois já havia concluído o
segundo grau. Na capital conheceu Bento Soares por quem se apaixonou perdidamente.
Incapaz de manter-se financeiramente dedicando-se apenas aos estudos, assumiu
função de nível médio numa instituição
bancária onde mourejava o dia inteiro, frequentando curso pré-universitário
no período noturno. Bento era colega de turma de Jorge Eduardo e de Amaro,
de quem acabamos de conhecer os trágicos destinos. Eram inclusive, amigos
inseparáveis além de dividirem a mesma habitação.
Mas o que havia em comum entre eles, parava por aí. Bento era ambicioso,
egocêntrico, portador de inteligência mediana, mas também
de um narcisismo exacerbado; muito desproporcional a qualquer atributo que se
lhe pudesse considerar: físico ou intelectual; ético ou emocional.
Aceitava a paixão de Fidélia como se lhe fizesse favor, porém
cobrava por isto. Em virtude de não ser também dotado de recursos
materiais suficientes para estudar sem trabalhar, embora a carreira por ele
pretendida assim o exigisse, não só aceitava como requeria a ajuda
material da moça. O romance durou seis anos; o tempo suficiente para
o crápula explorar a pobre jovem, abandoná-la sem um adeus e casar-se
com uma amiga de infância de quem se divorciou quatro anos depois.
A cerca de setecentas milhas de onde Jorge Eduardo cometera suicídio,
recreava-se na Riviera Francesa uma colega dele, de Bento e de Amaro. Bela,
carismática, bem sucedida na vida e na profissão, de personalidade
firme, forte e dominadora, jamais entenderia o gesto trágico de seu colega.
Muito pelo contrário, ao tomar conhecimento do fato, resumiu seu pensamento
numa sentença: "Sempre foi um fraco!" Aliás, desprezava
a todos quantos não houvessem sido bafejados pelo destino. Odiava os
infelizes, a quem atribuía toda a culpa por esta condição.
"Perdão" e "Desculpa" para ela deveriam ser banidos
dos dicionários e encarava esses vocábulos como palavrões
mais escandalosos do que aqueles pronunciados nas madrugadas de sexta para sábado
no "Bar do Ponto".
A propósito, adorava recomendar que os outros perdoassem a quem acaso
lhes ofendera, desde que sujeito e objeto de tais atitudes não fossem
ela própria. Era linda, tinha consciência disto, mas não
tolerava elogios advindos daqueles a quem considerava inferiores e, portanto,
indignos de louvá-la. Jorge Eduardo um dia a amara, mas quando tomou
conhecimento de suas origens emocionalmente pouco satisfatórias, dele
se afastou como o diabo da cruz. Um certo dia, quando ele num momento de extrema
fraqueza, mendigou uma esmola do seu amor, foi firme: "Doutor Eduardo,
nunca mais se atreva a se dirigir a mim, sob quaisquer circunstâncias."
Mas o miserável insistia, apesar de haver sido vítima de sua crueldade,
pois fora dela de onde partira a iniciativa do "relacionamento".
Chamava-se Luísa e mantinha um "caso" cheio de altos e baixos
com seu outro colega Bentinho, com quem planejara encontrar-se - naquela mesma
viagem -, em Paris. Havia também sido amante de Amaro, atraída
pelos seus dotes geniais, mas do qual também se afastara por abominar
suas fraquezas. Durante o episódio que resultou no rompimento, fora "caridosa"
o bastante com o desgraçado. Como este publicasse alguma matéria
de natureza científica no jornal acadêmico da escola, prometeu-lhe
permanecer fiel ledora dos seus trabalhos.
Bentinho e Luísa se encontraram em Paris, na Place Vendôme, em
frente ao Hotel Ritz. Haviam reservado apartamento comum mas tiveram o requinte
de exigir, para aquela ocasião, a mesma suíte imperial onde na
noite fatídica de 31 de Agosto do ano anterior, um Sábado, haviam
jantado Dodi Al Fayed e Lady Diana Spencer, ex-princesa de Gales e mãe
do futuro herdeiro da Coroa Britânica. Pediram Don Perignon de uma safra
especial e porções generosas de legítimo Beluga.
O comportamento dos dois fugia a todas as normas daquilo que se convencionava
adotar como normal. Pareciam encontrar-se sob o efeito de drogas alucinógenas.
Ao brindarem àquele bizarro episódio elevaram suas taças
à altura da face e pronunciaram estas palavra: "Aos vencedores,
o champanhe!" Beberam às libadas. Ao se servirem do caviar parodiaram
mais uma vez a máxima de Rubião - o inditoso personagem de "Quincas
Borba" -: "Aos vencedores o caviar!" Alugaram automóvel,
mas exigiram que este fosse da mesma marca e modelo da Mercedes utilizada no
dia da tragédia do casal famoso. Pareciam possessos: "Se possível,
o nome do motorista deverá ser também Henri Paul", ousaram
dizer. Pretendiam encharcar-lhe de uísque quando este chegasse para apanhá-los,
o que de fato fizeram, não obstante o nome deste fosse Marcel Debrot.
Entraram na limusine e exigiram que o motorista seguisse à toda velocidade
rumo à Pont de l'Alma., O veículo deixou a Place Vendôme
pela Rue de Castiglione. Ao alcançar a Rue de Rivoli dobrou à
direita e chegou à Place de la Concorde. Contornando o obelisco disparou
em direção ao Cours de la Reine, onde virou novamente à
direita. "Mais rápido", insistiu Bentinho gritando como um
demônio. Marcel acelerou a Mercedes até atingir a velocidade de
140 quilômetros por hora. O automóvel "voou" por Cours
Albert 1er, virando à esquerda, quase sem diminuir a marcha, e entrando
pelo túnel correspondente à Pont de l'Alma. Passaram a 150 quilômetros
pela pilastra onde sucedera o desastre daquela noite de Sábado de verão
do ano anterior.
Contudo, nada de grave lhes sucedeu. "Aos vencedores, o perigo!",
bradava em uníssono o par brasileiro. Estavam mesmo possuídos
por Satanás! Aos poucos, os efeitos do álcool e de outras drogas
foram arrefecendo, mas eles continuavam reiterando o sarcasmo da filosofia de
Humanitas: "Aos Vencedores, Paris!" Todavia, ao contrário do
Rubião, da desventurada princesa e de seu amante, haviam vencido mesmo.
"Aos Vencedores, O Prazer!".