Trabalhava como um mouro, preparando charque, para sustentar a mulher. Mais
faria. Nenhuma outra neste mundo se comparava a ela. Tinha todas as belezas
e todas as qualidades. Era perfeita. Seu amor pela companheira era infinito.
Sua veneração tão fervorosa, que ultrapassava as fronteiras
terrenas. Não concebia outro lugar para a sua bem-amada, a não
ser o Reino dos Céus. Apenas entre os anjos ela estaria a salvo dos vícios,
dos pecados, da maldade humana. Sua alma pura, seu corpo perfeito, aquela inocência.
Era uma Santa. Para ele, nenhum hagiológico, ou calendário, nenhum
cânone ou Martirologium Romanum registrou, concebeu, compreendeu, nem
compreenderia, como foi possível se concentrar tanta bondade e formosura
numa única mulher.
Vivia atormentado, a idealizar um Paraíso onde apenas ele a cultuaria
como se fosse a sua religião particular. E de tanto se perder em pensamentos
alucinados e sofridos, chegou a uma solução imperativa e derradeira:
uma facada, do lado direito do abdome, selou o seu amor maior que a vida. E
mais amou, porque girou o cabo da peixeira várias vezes sobre o fígado,
para que não houvesse a menor possibilidade de sobrevivência. Faca
afiada! Faca bendita! Faca sagrada! Empunhada não por sua mão,
mas pelo seu coração arrebatado. Exultava diante da glória
finalmente alcançada. Ela merecia infinitamente mais do que sobreviver
neste vale de lágrimas. Quando acabou o sacrifício, ajoelhou-se
e rezou . Depois beijou-a como se entregasse também a ela a sua vida.
E tão serena parecia ali, tão dócil e delicada, que uma
paixão incontida o dominou: Pôs o cadáver sobre a cama e
o possuiu três vezes durante aquela noite, experimentando prazeres que
jamais tivera antes. A manhã o encontrou chorando de espanto e de felicidade.
Beijou e depois cobriu cuidadosamente os restos mortais da esposa e saiu para
o trabalho. Retornou à noitinha e sentiu um leve cheiro de carne passada.
Porém, por amar demais ou por já estar habituado em função
do seu trabalho, não se incomodou. E se entregou ao amor e sentiu orgasmos
paradisíacos cavalgando o cadáver. Quando voltou na noite seguinte,
o estado de decomposição já ia adiantado e uma nuvem de
moscas-varejeiras enxameava sobre os despojos. Só então começou
a se preocupar.
Foi à cozinha e apanhou um quilo de sal. E, reafirmando o seu amor, desenhou,
com o cutelo, várias riscas pelo corpo da parceira. A seguir salgou-a
como era uma prática rotineira no seu ofício. Então, se
deitou sobre ela e a possuiu outra vez. Ao amanhecer, fez mais incisões
e acrescentou mais sal. Arrastou-a para os fundos do quintal a fim de expô-la
ao sol. Naquele dia choveu a cântaros. Nenhum raio de sol ousara aparecer
e o processo de decomposição se acelerou. Ao retornar, sua frustração
foi imensa. Ainda assim removeu o cadáver para a sua cama e se deitou
ao lado. Despertou pela madrugada com uma imensa ereção e manteve
mais relações com aquela coisa hedionda.
Quando o dia clareou, e veio cheio de luz, o corpo parecia uma posta descomunal
de peixe podre. De cada orifício escorriam filetes nauseabundos. A barriga
há muito tempo já havia estourado e as tripas luziam e estufavam
pra cima como se fossem horrendos balões de embutir linguiças.
Moscas-varejeiras tentavam competir com ele pela posse da matéria. E,
no entanto, sua insanidade a enxergava linda como sempre. Ele a queria ainda.
Não iria abandonar a sua amada. Precisava protegê-la. Precisava
vencer a luta... Desesperado tentou uma atitude extrema: Tomou a esposa, em
seus braços, e, repelindo a muito custo os insetos, levou-a novamente
para os fundos do terreno. Então, transbordando de ternura fez o seu
carinho se repartir em mil e desempenhou a tarefa mais delicada da sua vida.
Levou horas, mas, quando o sol esquentou, já tinha as mantas todas penduradas
no varal pra secar...
(2º lugar no Concurso de Contos e Poesias 1º Prêmio Jovem Escritor")