A Garganta da Serpente
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O Fazedor de Charque

(Raymundo Silveira)

Trabalhava como um mouro, preparando charque, para sustentar a mulher. Mais faria. Nenhuma outra neste mundo se comparava a ela. Tinha todas as belezas e todas as qualidades. Era perfeita. Seu amor pela companheira era infinito. Sua veneração tão fervorosa, que ultrapassava as fronteiras terrenas. Não concebia outro lugar para a sua bem-amada, a não ser o Reino dos Céus. Apenas entre os anjos ela estaria a salvo dos vícios, dos pecados, da maldade humana. Sua alma pura, seu corpo perfeito, aquela inocência. Era uma Santa. Para ele, nenhum hagiológico, ou calendário, nenhum cânone ou Martirologium Romanum registrou, concebeu, compreendeu, nem compreenderia, como foi possível se concentrar tanta bondade e formosura numa única mulher.

Vivia atormentado, a idealizar um Paraíso onde apenas ele a cultuaria como se fosse a sua religião particular. E de tanto se perder em pensamentos alucinados e sofridos, chegou a uma solução imperativa e derradeira: uma facada, do lado direito do abdome, selou o seu amor maior que a vida. E mais amou, porque girou o cabo da peixeira várias vezes sobre o fígado, para que não houvesse a menor possibilidade de sobrevivência. Faca afiada! Faca bendita! Faca sagrada! Empunhada não por sua mão, mas pelo seu coração arrebatado. Exultava diante da glória finalmente alcançada. Ela merecia infinitamente mais do que sobreviver neste vale de lágrimas. Quando acabou o sacrifício, ajoelhou-se e rezou . Depois beijou-a como se entregasse também a ela a sua vida.

E tão serena parecia ali, tão dócil e delicada, que uma paixão incontida o dominou: Pôs o cadáver sobre a cama e o possuiu três vezes durante aquela noite, experimentando prazeres que jamais tivera antes. A manhã o encontrou chorando de espanto e de felicidade. Beijou e depois cobriu cuidadosamente os restos mortais da esposa e saiu para o trabalho. Retornou à noitinha e sentiu um leve cheiro de carne passada. Porém, por amar demais ou por já estar habituado em função do seu trabalho, não se incomodou. E se entregou ao amor e sentiu orgasmos paradisíacos cavalgando o cadáver. Quando voltou na noite seguinte, o estado de decomposição já ia adiantado e uma nuvem de moscas-varejeiras enxameava sobre os despojos. Só então começou a se preocupar.

Foi à cozinha e apanhou um quilo de sal. E, reafirmando o seu amor, desenhou, com o cutelo, várias riscas pelo corpo da parceira. A seguir salgou-a como era uma prática rotineira no seu ofício. Então, se deitou sobre ela e a possuiu outra vez. Ao amanhecer, fez mais incisões e acrescentou mais sal. Arrastou-a para os fundos do quintal a fim de expô-la ao sol. Naquele dia choveu a cântaros. Nenhum raio de sol ousara aparecer e o processo de decomposição se acelerou. Ao retornar, sua frustração foi imensa. Ainda assim removeu o cadáver para a sua cama e se deitou ao lado. Despertou pela madrugada com uma imensa ereção e manteve mais relações com aquela coisa hedionda.

Quando o dia clareou, e veio cheio de luz, o corpo parecia uma posta descomunal de peixe podre. De cada orifício escorriam filetes nauseabundos. A barriga há muito tempo já havia estourado e as tripas luziam e estufavam pra cima como se fossem horrendos balões de embutir linguiças. Moscas-varejeiras tentavam competir com ele pela posse da matéria. E, no entanto, sua insanidade a enxergava linda como sempre. Ele a queria ainda. Não iria abandonar a sua amada. Precisava protegê-la. Precisava vencer a luta... Desesperado tentou uma atitude extrema: Tomou a esposa, em seus braços, e, repelindo a muito custo os insetos, levou-a novamente para os fundos do terreno. Então, transbordando de ternura fez o seu carinho se repartir em mil e desempenhou a tarefa mais delicada da sua vida. Levou horas, mas, quando o sol esquentou, já tinha as mantas todas penduradas no varal pra secar...

(2º lugar no Concurso de Contos e Poesias “1º Prêmio Jovem Escritor")

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