A Garganta da Serpente
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Anencéfalo

(Raymundo Silveira)

Anencéfalo. Anunciou o médico depois da ultrassonografia. Anencéfalo, precisa abortar. Informou o pré-natalista. Confirmado: anencéfalo. Corroborou o parteiro quando nasci, num Novembro qualquer. Anencéfalo! Não é o meu nome. Tiveram de me nomear para me fazer existir. Mas só me chamavam assim. Os colegas, os outros meninos, todo mundo. Inclusive professores. Estes não falavam na minha frente: diziam por trás. De mim, das portas e deles mesmos. Não afirmavam nenhum absurdo, a não ser o absurdo de eu ser. Sou mesmo um anencéfalo. Não estou me queixando, apenas registrando um pensamento. O quê? Anencéfalo não pensa? Como se enganam! Não posso pensar porque não tenho cérebro? E desde quando se precisou deste sinistro miolo branco para isto? Sinistro, sim senhor. Foi ele quem concebeu as grandes catástrofes. Não estão lembrados das assaduras recentes de seis milhões na Germânia e de mais de cem mil, duma só assentada, na Nipônia? Obra dele. Penso muito mais do que muitos aprumados. Melhor do que legiões de empertigados. Até escrevo. Frases desadereçadas de adjetivos, mas impecavelmente trajadas de substantivos. Vestidas como os lírios do campo. Querem ver? Não perdem por esperar. Um acaso, como um ocaso polar me trouxe aqui. O médico encarregado de me abortar perpetrou um erro médico e acertou. Ou cometeu um acerto médico e errou... Ainda estou por descobrir. Com qual órgão eu penso? Ora, com vários. Principalmente com o fígado. Aliás, eu nem penso: ele pensa por mim. Sozinho, dá conta de mais de meio milhar de complicadíssimas tarefas para me manter vivo. Como não poderia possuir um desempenho mais simples tal como conceber estas ideias? Mas se engana quem acha ser o limite. Logo ao nascer fui um ser desenganado. Meu fígado me salvou. Adulto, contraí câncer. No máximo dois anos, disseram os médicos. Após, pó. Cacos de vida. Devida ou indevida. Concedida pelo fortuito e salva pelo contingente. Mas eu queria viver um pouco mais. Não tinha medo da morte. Meus motivos eram menos pusilânimes. Reparar erros. Reconstruir. Estar quite comigo mesmo, com a vida e com os semelhantes. Meu prazo curto não permitia. Não havia como correr em busca do tempo perdido. Nenhuma alternativa a não ser retardar o futuro. Viajar à velocidade da luz, impossível. Encontrei outra saída. Prolongar os vinte e quatro meses para duzentos e quarenta. Não! Não viverei mais vinte anos do calendário. Estava em 2004. Em 2007 não estarei nem serei mais. Nenhuma possibilidade. Somente eu viverei vinte anos. Tempo suficiente para executar as minhas metas. Para o resto das pessoas não haverá alteração alguma. A única dificuldade foi encontrar o que pediam. Herdei muito. Sou rico. Podia pagar qualquer preço. Mas além de dinheiro, queriam algo quase tão absurdo quanto viajar à velocidade da luz. Aceitei o desafio. Ultrapassar limites. Para o derradeiro ideal, uma ideia firme. Fixa como o Corcovado. Tinha de agir rápido. O tempo por inimigo. Quando o pai-de-santo disse do que se tratava tive um ataque de riso. Me senti curado. Pediu um simples extrato de placenta. A ducha de gelo veio rápida. Não era uma qualquer, disse. Difícil de obter. Ainda assim continuei feliz. Cuidei se tratar de alguma mulher muito rara. Uma ariana pura. Uma caucasiana legítima. Quem sabe, uma senhora em plena menopausa. Todas as circunstâncias muito difíceis. Nenhuma impossível. Apenas questão de dinheiro. A decepção ainda estava por vir. Tinha de ser de homem. Não de pai, nem de feto macho, mas de mãe-homem. Ou seja, tinha de ser placenta de homem grávido. Deixou-me acabrunhado. Decepcionado. Jamais desesperado. Consultei todos os ginecologistas das grandes cidades do mundo. O menos insensível riu na minha cara. Só restava uma saída: pesquisar. Passei dias inteiros nas bibliotecas das melhores faculdades do país. Estudei cada tratado; cada periódico; cada página da WEB. Da América do Norte, Da Escandinávia, do Japão, da Austrália, do planeta. Depois de três meses, desisti. Na noite daquele dia, recebi uma carta anônima. Melhor dizendo, um pedaço de papel contendo três palavras: "Procure Lee Mingwei". Intuí uma troça e atirei o bilhete à lixeira. No outro dia, reconsiderei. Resgatei o papel e procurei Lee Mingwei na Internet. Achei. Tratava-se do primeiro homem grávido da história. Mais uma vez, meu fígado me salvou. Não vou entrar em detalhes. Apenas dizer que serviu de "útero" para a implantação do embrião. Assim, eu próprio, ou melhor, meu fígado, produziu a placenta masculina que prolongou a minha vida. Mais vinte anos. Só meus. Só meus! Vinte Novembros sagitariando aniversários que não vão existir, mas serão. Tenho de aviar a minha missão. Não ganhei este tempo para escrever memórias. Preciso cuidar dos meus ratos. Estão com muita fome. Quinze dias sem se alimentarem. Mais terrível do que a fome é verem a comida e não poder comer. Veem e sentem o cheiro. Não podem se aproximar. Geralmente se alimentavam à noite. Havia uma despensa repleta de víveres. Ainda existe. Está abarrotada de lacticínios. Há fileiras de queijos, engradados de manteiga. São inacessíveis. Situados a grandes alturas. Não existem chances de alcançarem. Há também porções acessíveis. Mas se tocarem serão esmagados. Ou aprisionados e mortos. Às vezes me pergunto qual circunstância infeliz determinou que estes infelizes nascessem ratos e não gente. Provavelmente, assim como eu, um mero acaso. Sofisma. Nascer gente não é garantia de não passar fome. Meus ratos são famintos, todavia livres. Há humanos tão famélicos quanto eles que não são livres. Minha resignação vai além. Algo me tranquiliza quanto ao padecimento dos meus sôfregos roedores sofredores. Não é improvável que os países onde se passa fome, partam para uma guerra total contra os outros. Isto jamais acontecerá com os meus ratos. Sob este aspecto, são superiores. Jamais se matarão uns aos outros. Certo que às vezes brigam por um pedaço de queijo, um pouco de manteiga, outro alimento qualquer... Nunca, porém, desaparecerão, enquanto espécie, por causa da falta de comida. Preciso contar uma história que não se deu. Os simplistas cuidarão ser fácil. Toda ficção é uma história inventada, dirão. Então, o imbecil seria eu? Não é isso. A história se deu, sim. Mas não pode ser dito o que se deu. Seria, então, uma anti-história. Se tivesse de ser contada à moda antiga, teria de começar assim: "Nunca foi uma vez..." Não será. Também não será uma narrativa convencional, com começo, meio e fim. Como ensinam os modernos tratados de ensinar a contar contos. Será que se ensina ou se aprende a contar uma história? Esta será a segunda pergunta sem resposta. Quem se lembra da primeira? Terceira pergunta. Esta até poderia ser respondida. E como tal, seria uma pergunta com resposta e exemplo. Logo, uma maçada. Mas a segunda tem resposta, sim: a primeira pergunta nunca existiu. Então, esta será a primeira segunda coisa sem primeira no mundo. Vamos, então não começar a nossa anti-história. Certa vez eu contava uma anti-história semelhante a essa e um dos ouvintes me perguntou se eu estava bêbado. Como não respondi, quem foi o idiota: eu ou ele? Quarta pergunta sem resposta. (Sem contar a do ouvinte). Esta será uma história como a Terra. Solta no espaço. Sem necessidade de se apoiar em nada. Sem conteúdo, sem tema, sem trama, sem fábula, sem, personagens. Sem nada. Como uma partitura musical: simplesmente se escuta. Não há necessidade de entender. Um conto só de forma. Onde o prazer da leitura (ou da escuta) será a simples degustação das palavras, como quem sorve uma taça de vinho alsaciano. As frases serão digitadas sem nenhum pensamento pré-concebido. Sem fluxo de consciência. Sem sequência lógica. Sem encadeamento de ideias. Salvo aquelas que surgirão do meu hepático inconsciente, enquanto escrevo. Um conto como Flaubert sonhava escrever. Não haverá estilo, nem unidade. Às vezes, nem coerência... Vou parar. Decidi não contar mais nada. Já disse: ganhei mais vinte anos de vida devida ainda não vivida, para outras finalidades. Não para escrever memórias. Tampouco para contar histórias. Sei o que pensam. Este cara é um embusteiro. Primeiro, tudo quanto ele diz não faz sentido. Segundo, tudo faria sentido se possuísse um cérebro. Um fígado não pensaria tantas coisas. Com sentido ou sem sentido. Consentidas, e não sentidas. Explico... Explico não. Explicitamente, complico. Fui um mistério doloroso que um dia se fez gozoso e se pretende glorioso. Sou um anencéfalo acéfalo sem encéfalo tentando viver, porque sobreviver, a muito custo, consegui. Serei um ser sem serventia, apenas cevando cervos - portanto também servindo - servindo sem servidão os vermes que servirão, seu alimento.

(22/01/2006)

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