A Garganta da Serpente
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Sopro de vida

(Regina dos Santos)

O toque do telefone quebra o pesado silêncio...

- Alô! É da casa do Adalberto?

- Não. Aqui não mora ninguém com este nome.

- Desculpe, então. Boa noite.

Minutos depois, o aparelho volta a tocar...

- Alô! É da casa do Adalberto?

- Não! Eu já lhe disse que, aqui, não mora nenhum Adalberto.

- Lamento o incômodo. Certamente, deram-me o número errado. Desculpe! Uma boa noite para o senhor!

- Espere um pouco! Não desligue ainda! Quem sabe eu possa ajudar...

- Como? Não entendi.

- Moro há pouco tempo nesta casa. Talvez um dos moradores fosse este tal de Adalberto. É seu parente?

- Não. Na verdade, não o conheço. Estou procurando-o, porque soube que tem um barco para vender.

- Um barco? Que interessante... Eu também adorava o mar!

- Bem, vou desligar. Já tomei muito o seu tempo. Desculpe mais uma vez.

- Espere! Não desligue.

- Por quê? Não estou entendendo...
- Por nada. Só queria conversar.
- Como?

- Só queria conversar um pouco...

- Não estou entendendo nada. O senhor mora sozinho?

- É, infelizmente... Com o passar dos anos, a solidão vai ficando cada vez mais pesada, a ponto de quase não conseguirmos carregá-la mais.

- Dizem os filósofos que a solidão é um dos maiores males dos tempos modernos. Eu concordo com eles! - disse o jovem.

- Ela é como a desnutrição para o corpo físico - quanto mais prolongada, mais irreversíveis seus efeitos.

- Que bonito isto que o senhor falou. Nunca tinha pensado desta forma. Mas, agora, preciso mesmo desligar.

- Por favor! Não desligue ainda. Fale-me do seu sonho de comprar um barco.

- Ah! Sempre gostei do mar. Ele consegue renovar-me as energias e fazer com que eu me encontre comigo mesmo. A vida de hoje é muito atribulada e acabamos esquecendo de nós mesmos. Cada um de nós precisa encontrar seu respiradouro e o meu é o contato com o mar.

- Quando eu era jovem, também gostava muito. Na verdade, faz muitos anos que não vejo o mar.

- Mas por quê?

- Quase não saio de casa. Uma faxineira vem aqui uma vez por semana. Contratei um vizinho para fazer compras pra mim. Só saio mesmo, quando sou obrigado, como para ir ao médico, ao banco ou coisas assim.

- E o senhor não tem amigos?

- Não. Todos já se foram: a esposa, os amigos, os filhos que não soube compreender. É tarde!

- Como tarde? Nunca é tarde para ser feliz.

- Feliz? Pensando bem, já fui muito feliz, mas isto foi há muito tempo. Só restaram as lembranças. E a saudade atroz!

- Percebo que o senhor está mesmo muito triste. Como é o seu nome? Eu me chamo Luiz.

- Muito prazer, Luiz. Obrigado por ter conversado comigo. Foi muito bom poder trocar ideias com alguém tão jovem e cheio de sonhos... Não sabe o bem que me fez. Um sopro de vida nesta casa deserta. Pode desligar agora. Muito obrigado.

- Espere! Agora, fiquei preocupado com o senhor. Tem alguém que eu possa chamar para lhe fazer companhia?

- Não, não tem. É tarde. Boa noite, meu filho!

- Espere! Não desligue! Agora, sou eu que preciso conversar...

- Mas já tomei muito o seu tempo e, além disso, a ligação vai ficar muito cara. Até me ofereceria para pagar, mas... É tarde! Muito obrigado mesmo!

O velho desligou o telefone. O jovem tornou a ligar. E o som do aparelho, misturado ao barulho de um tiro, quebrou o silêncio da noite pela última vez.

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