Desde criança, em êxtase, eu ficava horas diante da minha imagem.
Se dúvidas ou angústias me assaltavam, eu interrogava meu reflexo.
O espelho tinha sempre a resposta. Assim, minha imagem foi-se fazendo imperativa
em sua ascendência sobre mim - e aos poucos eu não distinguia
mais se meus pensamentos eram meus ou se nasciam da minha imagem.
O espelho, herança de uma bisavó, mostrou-me na infância
e na adolescência, assistiu a meus anseios de jovem masculinidade, retribuiu-me
o sorriso e malícia do primeiro encontro secreto (repugna-me o episódio,
e se minha imagem recorda o sangue em meus pentelhos, abaixo a cabeça
sob o peso do pecado). Numa ocasião meus pais me proibiram certos amigos,
julgando-os inconvenientes. Cedi. Depois, chorei de raiva ao ver, no espelho,
minha imagem miserável: "Não mereço existir, não
mereço estar vivo."
Mas não fui sempre perseguido pelo próprio fantasma, e o simulacro
de hombridade que me assomou ao rosto com os primeiros fios de barba fez a alegria
e a felicidade da minha imagem. Minha cópia era iridescente orgulho.
Comemorei em prolongada carraspana, que me distanciou de casa alguns dias. Quando
voltei, o espelho rebateu-me eco frio, desolado, que me dissuadiu de novos afastamentos.
Preso à minha reflexividade egótica, eu me fiz imagem de minha
imagem, alienando-me de mim mesmo. Se ia à rua, procurava-me nos grandes
vidros dos edifícios modernos, imponentes, e nos espelhos embaciados
dos banheiros públicos. Nada reproduzido, nada, nada: sem reflexo, eu
inexistia.
Mas em casa, ao meu espéculo, reencontrava, desvalida, a minha imagem,
imago ancestral, jacobina.
Daqueles dias, certa ambígua e paradoxal tensão ainda hoje mesmeriza
estampa e o ser refletido. Companheira, essa imagem, mas da vida, também,
negação. Vetava-me amigos e farras, e agora mata os sonhos que
eu houvera tido.
Por isso, para fugir ao espelho, arrumei um emprego. Mas todas as noites, de
madrugada, no breu aterrador de perene insônia, olhos ameaçadores
bradam: "Seja escravo apenas de sua imagem." Impossível conciliar
liberdade e contingência. Abandonei o trabalho. O espelho felicitou-me
com ardor e comemoramos entre brindes de champanhe: narciso e eu, enfim, tornamo-nos
um só ser.
Foi nesse onanismo desregrado, festivo, voluptuoso, que resolvi casar. Fiz segredo
da intenção evitando novas intimidades com a minha imagem. Numa
madrugada voltei com uma qualquer que escolhera por esposa. Atravessamos longo
período - não importa se horas ou dias - engalfinhados
em jogos amorosos, extenuante prazer.
Quando tive saudades de mim mesmo e me procurei, nada vi refletido. Colérico,
expulsei a mulher, reconciliei-me comigo mesmo. E o espelho mostrou-me impotente,
decrépito, sem arbítrio.
Ainda assim, esmaecida consciência de que poderia buscar a liberdade,
domar tigres, dominar labirintos, remoia no fundo de minha alma - caso
houvesse finalidade na minha vida, caber-me-ia destruir o espelho, caber-me-ia
impedir, no futuro, o passado e o presente asfixiantes.
Decidi então cobrir com um cobertor o móvel maligno, convicto
de que deveria me livrar dos liames que vinculavam meus atos à censura
espectral.
Mas, sem fibra e sem caráter, sem forças para permanecer lúcido
e razoável (se é que alguma vez deliberei com razão), voltei
atrás.
Da imagem quase morta me veio ânsia por explicações que
justificassem minha inútil existência. Nada encontrei conclusivo.
Sequer satisfatório a loucos, a débeis mentais. Restou-me o enigma
da gratuidade de todas as coisas.
Venho sendo então cada vez mais subjugado ao que o totem arquétipo
determina que eu seja. O speculum domina-me e me impõe quase todas
as minhas ações. Resolvi destruí-lo. Tenho já sob
a cama um machado. Acompanha-me, porém, a sensação de que
estraçalharei comigo e minha única herança em tempos brutais.
É isso que, nesse instante, detém a mão assassina suspensa
a poucos palmos de consumar, inexorável, o seu fim.