Nos poucos momentos em que costumava refletir com mais clareza, Robélio
jamais conseguia chegar a alguma conclusão plausível. Em outros,
mais frequentes ultimamente, ficava aéreo, pensando no que havia
feito e que, talvez, seus esporádicos instantes de lucidez tenham sido
muito mais que tardios.
De onde viera aquele sentimento tão forte que os unira daquele jeito
tão estranho, desequilibrado, quase insano? Não sabia se fora
pelo jeito todo especial com que ela costumava pronunciar, com a língua
ligeiramente presa, "seu-sa-fa-di-nho!"; ou poderia ter sido aquele
unguento canforado, de um verde leitoso e muito suspeito, que ela lhe esfregara,
um dia, para curar uma terrível dor nas costas, quando ainda namoravam.
Em que pesem tantas estranhezas, o fato é que finalmente casaram, para
a felicidade de todos, ou quase.
Depois, outra incógnita. Também nunca soubera, ao certo, se foi
pelo arroz agulhinha, cozido com caldo-em-cubos, no bafo e em fogo brando, que,
terna e ingenuamente, ele a ensinara um dia a fazer, logo depois do casamento,
como seu maior segredo; ou se realmente, como muitos acreditam, tenham sido
os 6 abortos que causaram a ela tão mórbida silhueta. Como uma
verdadeira mulher-elefanta, cuja tromba invisível sugava suas vidas.
O fato incontestável era que Veneranda não parava de engordar.
Não bastasse aquela fome interminável e obsessiva por arroz com
caldo-de-galinha, a compressora e abissal obesidade de Veneranda indicava um
fim iminente. Robélio não sabia de quem seria o tal fim, mas os
constantes arrotos e os insuportáveis flatos da esposa indicavam-lhe
uma provável certeza.
Ainda lembrava, com saudade, de um não tão recente passado. Via,
como em sonho, eufórico ainda, nitidamente, o corpinho bem desenhado
de Veneranda com seus primitivos 52 quilos, bem distribuídos em 1 e 73
de altura, pouco antes do casamento. Mas ele nunca aceitara o fato de se ver
obrigado a casar, em decorrência de uma gravidez indesejada, fruto do
vacilo de insipiente namoro.
Depois, vieram os abortos. Sucediam-se, como penitência, em intervalos
regulares. Uma maneira, talvez, de mantê-lo preso a ela, continuamente
em vã expectativa, como ele chegou a pensar. Ou, quem sabe?, fosse mesmo
pelo insistente e sincero desejo da esposa em querer filhos a correr pela casa,
como ela costumava dizer sempre antes das refeições. Mas não.
Não vieram. Robélio chegara à conclusão que os filhos
não queriam vir para não verem uma mãe daquele tamanho,
descomunal. Uma verdadeira aberração da natureza.
Para Robélio, as infindáveis noites insones deram-lhe uma feição
de morto-vivo, com olheiras abomináveis a tomarem-lhe a face. Veneranda,
enquanto isso, engordava mais e mais no transcorrer dos dias. Robélio,
ao contrário, muito magro, parecia definhar.
E sem muito refletir e querer, enquanto esperava o sono que parecia nunca vir,
fazia apostas imaginárias: quem partiria primeiro, Veneranda ou ele?
E permanecia prensado, como sempre, num canto da sofrida e arqueada cama do
casal, na qual a esposa, entre roncos e flatos, tomava conta de mais de três-quartos
do colchão.
Até que um dia, coincidentemente ou não, ele sentira algo em
Veneranda que lhe machucava ligeiramente o dorso da mão direita. Percebeu,
então, uma estranha saliência nas costas da esposa, um pouco acima
do cóccix. Acendeu rapidamente a luz do abajur para ver melhor, temendo
a provável presença de algum incômodo inseto noturno. Aproximou
a luminosidade bem junto à extremidade norte das robustas nádegas
de Veneranda. E viu.
Estava ali, quase imperceptível. Assemelhava-se a uma válvula
de retenção, branca como toda a pele de Veneranda, plástica
como àquelas de boias infantis salva-vidas. Tomado pela perplexidade,
deixou-se mover pelo ímpeto da curiosidade, tentando inadvertidamente
abri-la. Sentiu certa dificuldade em desobstruir a pequena engrenagem, mas insistiu
até conseguir.
Instantaneamente, começou a escapar, sob uma incrível pressão,
um gás tomado de odores, num misto de difícil qualificação,
no qual pôde identificar, com asco e ânsia, algumas supostas e estranhas
fragrâncias, dentre outras: enxofre, carne putrefata, arroz com caldo.
À janela, para onde se socorrera instintivamente, Robélio, tomado
pelo pavor e desespero, procurava lá fora um pouco de ar respirável.
Quando pôde, voltou ainda mais uma vez o rosto em direção
à cama e observou abismado. Na penumbra do leito conjugal, jazia o enorme
corpo da esposa totalmente murcho. Da válvula recém aberta, escapavam
uns pequenos e últimos jatos espasmódicos, como flatos, sonoros,
fétidos.
Desde então, Robélio, ao sentir eventual e estranha comichão
nas costas, ainda mais àquelas próximas ao quadril, ignora-a ou
faz de conta que não sente, evitando a todo o custo levar a mão.
E o medo! E o medo!
P.S.: não tente fazer isso em casa sem a presença de um adulto!