A Garganta da Serpente
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O caminho de pedras brancas

(Ramiro Ribeiro Batista)

Hoje, ainda cedo da manhã, enterrei minha esposa. Uma morte natural, sem testemunhas, sem choro, sem nada, como morrem os animais. Ou melhor, foi como se não tivesse morrido e apenas adormecesse. Nada de muita cerimônia, nem ninguém além de mim e Tóbi, o cão. Eu me tornara, agora, ex-marido, viúvo e o coveiro da própria esposa. Se fosse dizer qual a causa da sua morte, diria que foi mais por amargura de viver que velhice. Como aquelas velhas rabugentas que se fecham pro mundo, não vendo mais razão na vida, e se enclausuram dentro de si mesmas, rezando um pouco a cada dia. Como se estivessem pagando com reza a entrada pro Céu.

Coloquei-a bem próxima das sepulturas de seus pais. Fiz aquele monte de terra, como canteiro de verduras, igual às outras. Talvez fossem querer assim. Um reencontro para ficarem bem juntinhos depois de 20 anos. Agora, finalmente, posso dizer que estou só. Realmente só. Embora ainda sinta sua presença fantasmagórica. Como se ainda estivesse aqui. Coisa que talvez só o tempo dê fim. E em meus sonhos talvez nada, nada mude, e continuará meu tormento de vê-la definhando aos poucos.

Não fiz qualquer oração, no enterro. O corpo sem vida é realmente sem vida, como um saco de farinha, feijão, adubo. Nem me lembrei de rezar, mas acho que nem precisava. Ela já tinha rezado tanto na vida. Seria algo muito formal para o que sobrou de dois velhos eremitas, num vilarejo sem vida, longe de tudo, esquecido do mundo. Não senti nada de diferente depois, além do meu cansaço. Demorei um bom tempo com a cova. E como é difícil o esforço de cavar aos 77 anos. As mãos tremem, os braços cansam e logo vem a fadiga. O coração dispara, dá tontura, isso quando não baixa a pressão.

A cova ficou bastante rasa, mas acho que o suficiente para que nenhum animal possa cavoucar e estragar o descanso da velha mulher. A cruz de madeira eu improvisei com dois pequenos galhos de guajuvira. Madeira que sobra aqui nessas matas. Apanhei os mais retos que encontrei. Amarrei-os com um pedaço de soga velha que ainda restava no galpão, jogada num canto, há muito sem serventia. E entre os canteiros fiz um improvisado caminho de pedras brancas, bastante comuns aqui na região. Para o acaso de precisar vir aqui em dias chuvosos, não sei, pensei. Se for preciso, ao menos não sujarei os sapatos de barro.

Minha velha esposa tinha acabado de completar 67 anos, há dois meses. Lembro bem que nem dei meus parabéns. Ela sequer quis que eu a abraçasse. Quando o coração murcha e endurece, não há sentimento que o faça mudar. Passou como um outro dia qualquer. Ela sempre achou bobagem essa coisa de felicitar aniversariante. Dizia que aniversário é só pra lembrar que falta um ano a menos para o fim. E seus pensamentos rudes e insensatos tornavam-na um pouco mais áspera a cada dia, no rosto e na alma.

Embora passados mais de 30 anos de casados, lembro que tudo fora arrumado. Só restávamos nós dois solteiros na vila. Foi só por interesse de ambos mesmo. Já não éramos mais jovens, muito embora, às vezes, nos portássemos como crianças diante do desconhecido. Dez anos nos separavam e eu jamais imaginei que fosse casar depois dos 40. E casei aos 47, por mais incrível que possa parecer. Apenas, unimos nossas solidões. E pensava ser mais fácil conviver com a solidão, se estivesse acompanhado. Dividimos cama e colchão como duas pessoas do mesmo sexo. Dormíamos de bunda um pro outro. Embora a tristeza e o vácuo da solidão sempre tenham me acompanhado por anos e anos, mesmo depois de casado, uma esposa em casa diminuía um pouco o tédio e a melancolia. Juntos compartilhávamos de algo muito semelhante e, eventualmente, quebrávamos o silêncio fazendo comentários vazios e desnecessários sobre o tempo.

No dia do casamento, poucas pessoas, um bolinho de milho, bem simples, comum e doce, suco de laranja, limonada pros fãs de azedos e alguns biscoitinhos caseiros de polvilho. Vieram só os cinco casais da vizinhança na época e os futuros sogros. Todos já sabiam o destino da vila e nossa união apenas prolongaria por um pouco mais de tempo o inevitável. E todos já sabiam, também, que não adianta lutar contra algo que sabemos que jamais vamos vencer.

Depois do banho, nem liguei o rádio de pilha. Apenas preparei o chimarrão, como tenho feito há anos, todas às tardinhas. Coloquei algumas folhas de erva-cidreira na chaleira. Acalma e faz pensar. Deixei a porta da cozinha aberta, de onde se pode ver o cemitério no alto de uma pequena coxilha, não muito longe da casa. Deixei dois pedaços de lenha grandes na boca do fogão, para que a chaleira se mantenha quente por bastante tempo. E, enquanto sorvo uma cuia e outra, sinto a aspereza da palha da cadeira de balanço. Vejo a outra cadeira em que ela costumava se sentar até ontem, na minha frente. E que o vento parece embalar, bem fraquinho. Como se a leveza da carente alma de velha não conseguisse fazer força pro balanço.

Ao lado da cadeira, um baú velho de madeira com suas coisas de costura e crochê. Que serventia terão agora? Talvez eu precise costurar algum botão desprendido ou alguma roupa que se rasgue. Mas mal enxergo sem os óculos e talvez nem consiga acertar a linha na agulha. Tóbi lambe minha mão, como se perguntasse onde está a velha. Faço um carinho na cabeça do cão e lembro que foram raras as vezes em que fiz o mesmo com minha esposa. Não que eu não quisesse. Vontade nunca faltou. Acho que eu temia era a reação dela ao receber um carinho. Sempre tão arredia e desconfiada.

Lembro da noite de núpcias. Não foi nada além de uma experiência bizarra, para não dizer grotesca e traumatizante. Como duas pessoas que sequer tinham certeza do que era sexo e a qual cada um pertencia. Carregávamos, além do excesso de expectativa, anos e anos de tabus, crendices, preconceitos, tradições tolas. A coisa saiu meio que por conta. Um instinto, natural e mecânico.

Estávamos ainda vestidos, envergonhados até para olharmos um ao outro. Ela de camisola branca, longa, de algodão cru. Eu de ceroula comprida da mesma cor. Sequer soube se a havia penetrado, parcial ou inteiramente. Na escuridão do quarto, rostos afastados, em lados opostos, para não sentir os hálitos um do outro. Quando percebi que fazia, gemi, e apenas ouvi dela um suspiro, mudo e abafado, como de quem dorme. Estava feito. Não houve filhos e não sei se dou graças por isso. Talvez sim. Se eles tivessem existido, com certeza, já teriam ido embora pra cidade, como todos os poucos jovens daqui fizeram.

Os dias que se seguiram se distinguiam pelos números de enormes folhinhas penduradas ao lado da geladeira à bateria de caminhão. Propaganda de uma das lojas da cidade mais próxima, a mais de 200 quilômetros. Ela anotou a data dos nossos aniversários e o de casamento. Mas esse costume só durou um ou dois anos. Depois, nem folhinha havia mais e eram os vizinhos que nos avisavam sobre certos dias e determinadas datas. O eterno repetir de coisas tão iguais acabou por nos absorver e, sem que percebêssemos, já éramos mais um dos poucos casais de velhos, de uma vila velha, num mundo mais velho ainda.

As casas envelheciam, os móveis envelheciam, a vila e a vida já davam sinais de um fim, como tudo um dia terá. Até que não é tão ruim saber que um dia não haverá mais ninguém e tudo será envolvido por teias de aranha e pó. Os cupins terminarão o serviço, provavelmente, e, numa tempestade qualquer, só restarão ruínas.

Aqui, sempre cultivamos de tudo um pouco, mas, mesmo assim, tínhamos que nos socorrer de alguns produtos numa das vendas da cidade. Fermento químico em pó, sal amoníaco, bicarbonato, para pães e bolos; querosene, velas e fósforos para trazer um pouco de luz a nossa escuridão. E, de brinde, vinham as folhinhas com os dias da semana, os meses, com as fases da lua, avisando, a quem não sabe, os dias bons para se plantar.

Outras vezes, recebíamos pequenos livrinhos, manuais de doenças, plantas que curavam, remédios manipulados do laboratório Klein, do Fontoura ou do Catarinense. Foi com esses livrinhos que peguei o gosto pela leitura e pelos livros. E, a cada viagem, eu trazia um livro novo. Com o tempo, comecei a pedir sugestão ao vendedor, sempre atencioso. Lembro bem dos que trouxera na primeira vez. "Moby Dick", de Herman Melville, e "Um Estudo em Vermelho" e "O signo dos Quatro", de Sir Arthur Conan Doyle, foram os primeiros. Depois trouxera Julio Verne, Mark Twain, Edgar Allan Poe, Alexandre Dumas e muitos outros.

Com o tempo, as viagens foram ficando mais raras. Minha idade avançada, a lide na lavoura, pesada e cansativa, e uma machadada acidental na perna não me deixaram mais ir à cidade. E minha esposa passou a fazer as compras, mas nunca mais trouxera livros. Dizia que já havia o suficiente, que era bobagem de velho e que devíamos poupar dinheiro. Além do que, eu precisei fazer constantes curativos no ferimento que parecia que nunca cicatrizaria. E a solução foi reler os mesmos livros, enquanto me convalescia. E o mais incrível era que, ao reler, era como se nunca os tivesse lido. Balançando na cadeira, tomando mate e lendo. Os cães, ao lado, sempre fazendo companhia. A mulher apenas me observava por cima dos óculos, enquanto costurava ou fazia crochê, talvez estivesse se perguntando o que haveria de tão interessante naqueles livros velhos e lidos e relidos.

E assim foi e tem sido a minha vida, como se purgasse por algo que fiz e não sei e nunca vá saber. De outras vidas, alguém já disse. Tolice, sempre achei. As pessoas daqui sempre vinham, surgiam de repente, como surgidas do nada. Quando nos dávamos conta, elas já faziam parte das nossas vidas, mesmo que coadjuvantes. Agora, não plenamente só, pois ainda há o Tóbi a me acompanhar, tenho todo o tempo do mundo. Mas como um velho como eu pode aproveitar todo esse tempo, se me falta força e estímulo suficiente? Sorvo mais uma vez a bomba, e o ronco na cuia me desperta. Olho para o cão, pego a chaleira, encho outra cuia e sorvo mais uma vez a bomba.

Enquanto isso, pela porta, olho sem muito me deter e vejo que a lua que aparece na coxilha ilumina timidamente o pequeno cemitério. Mas o suficiente para ver um inusitado efeito nesta primeira noite de viuvez. E o caminho de pedras brancas que fiz entre os canteiros parece refletir uma estranha luminosidade. As pedras brancas formam uma espiral de três voltas e sai pelo outro lado. Penso e percebo que, como está, não há lugar para mim lá. E enquanto reflito, dou-me conta de que não haverá ninguém para me enterrar, quando eu morrer. Espero só, que Tóbi morra antes, para que ele não fique vagando perdido por aí, ou então fique eternamente ao meu lado esperando que eu acorde de um sono sem fim.

Largo a cuia e volto para a realidade. Olho a estante de livros velhos. Andando com um pouco de dificuldade pelos esforços do dia, apanho um deles. É um livro de Victor Hugo, "Os miseráveis". Volto para a cadeira de balanço. Coloco o lampião bem próximo. Abro o livro e percebo como é gostosa esta sensação. Começo a ler sem me preocupar com horário de janta, horário de dormir, louça pra lavar, nada. Era exatamente com isso que minha velha estaria preocupada, se ainda estivesse aqui. Com esses pequenos detalhes que me surgem, assim, percebo que, nessa minha nova solidão, estou finalmente livre. Finalmente livre. Livre. E... Estou na França de Victor Hugo...

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