Quando se é recém-casado por esses primeiros dias velozes que
fogem para o passado, com uma rapidez incrível; em que almeja-se ardentemente
que a noite desça, porque se ama o recato das sombras; em que suspira-se
pela manhã, porque a manhã traz aquela preciosa luz fresca que
convida a esses passeios ricos de efusões e mútuas expansões
amorosas; nesses rápidos dias que os europeus gostam de saborear à
beira do Adriático, cobrindo-se com o céu da Itália, ou
no meio dos lagos da Suíça, entre os nevoeiros que descem das
cumeadas glaciais e brancas; nesse fragmento de vida que os Fluminenses passam
refugiados nas alturas verdes e saudáveis da Tijuca, nos saborosos dias
da lua-de-mel, há certas confidências murmuradas docemente entre
os esposos, confissões muito em segredo, que só entre os dois
pombinhos se dizem, e como arrulhos se perdem na ventania que a floresta manda...
E assim deve ser. Tal é a doçura estranha dessas conversações,
tal é a intimidade religiosa, em que se confundem a expansão e
a reserva, num mistério tão delicado, que é melhor, muito
melhor que se percam no espaço, longe dos ouvidos indiscretos como o
canto do pássaro na mata virgem...
Foi numa dessas entrevistas meigas e misteriosas, que a pequena Adélia
pôde saber porque motivo, pouco antes do seu casamento, Eduardo deixara
dois dias em seguida de ir vê-la à casa do pai e soubera também
o motivo daquela palidez cruel com que ele reaparecera, rindo muito, jurando
que aquilo fora um ligeiro incômodo; que já estava perfeitamente
bem, sem conseguir entretanto, ocultar absolutamente que sofria.
Haviam se casado.
Aqueles dois dias e aquela palidez, foram a tristeza da sua alegria no casamento.
Eduardo estava pálido, dentro da casaca preta que mais pálido
o fazia. Adélia ficara também pálida e melancólica.
Quando ela soube o motivo, quando descobriu a cicatriz recente que ele tinha
pouco acima do calcanhar direito, foi então que a melancolia desapareceu-lhe;
mas como não sofreu ainda de vê-lo doente da ferida que mal acabava
de fechar-se!
Pôs-se a refletir no fato.
Teve medo de interrogar positivamente Eduardo. Fez conjeturas, todas as conjeturas,
e tratou muito dele, maternalmente como uma irmã, como uma filha, muito
empenhada em vê-lo completamente restabelecido...
Eduardo pelo contrário inebriado de amor por ela, não cuidava
de si. Só queria beijá-la. Cobria-lhe de beijos as pálpebras,
ambas as faces, os lábios, beijava-lhe até, cousa incrível!
beijava-lhe a concha das orelhinhas rosadas de veludo! Pobre Eduardo!...
Afinal Adélia veio a conhecer tudo. Tudo... que poema! Escapara de ver
na candura nívea das asas do seu amor uma triste mancha de sangue. A
história do seu noivado por um triz que dava em tragédia e todos
os sorrisos e juras por uma linha que não degeneraram em pranto e desespero.
Felizmente tudo ficara em riso, o sangue se reduzia a salpicos vermelhinhos,
pontuando as asas de neve dos seus Cupidos.
Parece invenção. Entretanto, a cicatriz lá estava, pouco
acima do calcanhar de Eduardo, como a prova palpitante.
Foi assim.
Moravam em Santa Teresa. Da casa de Adélia, no alto, avistava-se embaixo,
numa das ruas da encosta do morro, a casa onde morava Eduardo.
Todas as tardes, depois que ele a pediu em casamento, o moço subia a
ver a noiva e visitar a família do futuro sogro.
Raramente faltava. Quando ficou determinado o dia do casamento, as visitas de
Eduardo tomaram-se infalíveis. Em todo o lugar falava-se do próximo
enlace.
Repentinamente, com grande espanto de todos da casa de Adélia e principalmente
desta, Eduardo falta um dia. Mandaram saber porque.
- Estava incomodado.
Falta segunda vez...
Duas vezes... Era incrível...
Um noivo como ele faltar duas vezes... era grave.
Nova visita.
- Vai melhor... mas...
Todos ficaram sobressaltados.
Quanto caiporismo!
Havia alguns dias que tudo acontecia naquela casa. Um telegrama viera, noticiando
moléstia grave de um parente que estava em Cabo Frio, o padrinho de Adélia,
para sinal; a estouvada da Joana quebrara uma dúzia de pratos, por querer
carregá-los todos duma vez em pilha; ainda mais, entrara pelas janelas
da frente, uma grande borboleta preta que fora pousar exatamente na caixa do
enxoval da menina...
O cão do vizinho uivara toda a noite...
Acontecia tudo. Até na véspera mesmo da doença de Eduardo,
a casa fora visitada à noite, pelos ladrões que haviam espatifado
a hera de um muro que dava para a ribanceira de um morro por onde naturalmente
os gatunos haviam passado. E isso não fora uma vez só. Primeiro,
o pai de Adélia muito escrupuloso dos seus penates, examinando o jardim,
como de costume vira o caminho aberto na hera. No outro dia achou a planta mais
estragada... já começavam a desaparecer peças de roupa
do quintal, por exemplo um lenço de Adélia que ficara no coradouro...
No outro dia, o velho esperou.
Pôde, apenas, distinguir uma sombra escorregando para o lado da ribanceira.
Correu ao jardim com a decrépita espingarda, que representava a derradeira
segurança do seu lar, mas não viu nada.
Ainda uma vez, esperou o tratante (que afinal parecia não ser tão
bandido como se supusera a princípio, porque as galinhas não desapareciam
do galinheiro, nem as roupas do coradouro). O velho pai de Adélia escorou-o,
dedo no gatilho e olho na hera do muro. Logo que percebeu a sombra... fogo!...
Não se ouviu nem um grito, através da noite, mas o pai de Adélia
não teve ânimo de ir verificar se acabava de fazer um cadáver...
Na manhã seguinte, achou-se sangue pela hera e pelo chão.
Contudo a preocupação de Adélia não era a borboleta
preta na caixa do enxoval, nem o cão do vizinho uivando à noite,
nem mesmo as suspeitas verificadas de que os ladrões visitavam o quintal...
A sua preocupação era outra.
Havia dias, que ela encontrava, todas as manhãs, uma flor, no peitoril
da janela do seu quarto.
Não acreditava em duendes, mas tinha medo de verificar qual era a mão
misteriosa que depunha ali o matutino brinde. Depois, era tão bom não
saber cousa alguma e adorar todo o dia aquela rosa, aquele cravo, ou aquele
raminho de violetas que dir-se-iam cair do céu com o orvalho!...
Repentinamente deixam de aparecer as flores!...
E esta desgraça, que ela amargava de si para si intimamente, como nos
dias anteriores, saboreara a contemplação dos brindes misteriosos,
acabrunhava-a, mortificava-a.
Uma suspeita que minava-lhe o cérebro, avultou, ocupou-lhe o espírito
todo... Aqueles ladrões... aqueles ramos de hera quebrada no muro da
ribanceira... o sangue... o sangue sobretudo!...
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