Ricardo comprou um piano no seu aniversário de cinquenta anos.
Esperou quarenta anos para realizar parte de seu sonho. Estreou-o imaginando-se
Oscar Peterson, Dave Brubeck, Ahmad Jamal, Herbie Hancock, Tom Jobim...
Esqueceu que tinha acabado de se mudar para um prédio, sempre morou
em casa que não tinha lei do silêncio, nem regras de convivência
com estranhos. Começou a tocar alto, muito alto, quase com raiva! A campainha
o interrompeu. Foi abrir a porta e deu de cara com um olhar curioso de um menino
de uns dez ou doze anos.
O guri pediu açúcar e se apresentou. Sou o André seu vizinho
da frente.
Ricardo assustado deu o açúcar, o menino agradeceu e se foi. Ele
fechou o piano.
Deitou lembrando-se do Ricardo na idade de André. Já não
tinha mais pai, apenas sua mãe dando um duro danado para sustentá-lo.
Seu pai era um homem da noite, tocava e cantava por vinténs, mas tinha
um sorriso deslumbrante. O coração dele parou tão Tenderly.
No dia seguinte, assim que chegou do trabalho, abriu novamente o piano e Oscar
Peterson, Dave Brubeck Ahmad Jamal... Tocou por duas horas e só parou
porque ouviu a campainha. Outra vez?
André desta vez usou a desculpa de fazer um favor. Avisar que ele tinha
esquecido o jornal na porta.
Agradeceu, apanhou o bendito, fechou a porta e o piano. Ele se deitou e o passado
se levantou.
Quando mostrou inclinação para música sua mãe teve
um ataque histérico.
- Nada de repetir a história. Quero você com futuro certo. Ele
abortou seus devaneios, tirou o piano da ideia, virou engenheiro, casou,
teve filhos, descasou, virou avô. Tudo às pressas sem Tenderly.
Inúmeras semanas se passaram nesse ritual. Chegava, abria a porta e
o piano. Tocava cerca de duas horas seu repertório de sempre, até
ouvir a campainha. André pedia sal, cebola, arroz, informava algo, afirmava
que havia tocado errado e ia embora. Ele fechava a porta e o piano. As recordações
se abriam.
Assim que se casou, percebeu que a esposa já era aliada da sogra. Gostava
de música, mas nas mãos de outros. Preferia vê-lo resolvendo
o pé direito de alguma moradia e que se danasse o lado esquerdo de seu
peito. Tenderly existe?
Teve dois filhos e realmente preferiu dar-lhes o conforto que não teve.
E deu! Seu menino virou médico e a menina arquiteta. Deu tudo à
eles, só faltou o sorriso deslumbrante, memória bonita que tem
de seu pai.
Numa noite vagabunda de dar dó maior abriu a porta e o piano. Varou-a
e só percebeu o amanhecer quando Sol refletiu em Si. O menino não
tinha aparecido e o sono vencido as recordações. Perdeu seu horário
de trabalho pela segunda vez na vida. A primeira foi no dia em que comprou o
piano.
Curioso, com a ausência do inoportuno vizinho, abriu a porta. Viu um
anúncio de venda do apartamento em frente. Seu único expectador,
ainda que intimamente com vaias, havia partido. Tenderly não existe.
Seu piano, suas recordações agora acrescidas das saudades do
menino continuaram todas as noites tocando em seus solitários ouvidos
até o dia em que aconteceu uma mineira, bem no auge do maior porre de
sua existência. Dedilhava a calçada e ela parou encantada.Começou
a cantar alto, bem alto.
Amor ao primeiro acorde!
Véspera de fazer sessenta anos, agora com Heloísa, resolveu ir
para Belo Horizonte. Sua linda queria porque queria que ele conhecesse a família
dela, que comemorassem seu aniversário lá.
Encontraram-se num bar com música ao vivo. Ele ouviu o som do piano
antes mesmo de se sentar. Oscar Peterson, Dave Brubeck, Ahmad Jamal, Herbie
Hancock, Tom Jobim? Na sequência do seu encantamento? Não
tinha bebido ou bebeu tanto que se esqueceu da bebida?
No intervalo, não resistindo a emoção quis conhecer e
brindar o pianista.
Olharam-se fixos e dois pares de olhos marejaram. André cresceu tanto
quanto suas saudades dele. Um abraço apertado e o menino-homem
fez questão que ele assumisse o piano. Ricardo começou a tocar
e a pensar na criação do mundo.
Fomos criados para sermos a semelhança de Deus, mas que coisa divina
encontrarmos um humano que se faz semelhante a nós.
O piano finalmente tocou Tenderly.