O cursinho de admissão que fazíamos para enfrentar o ginasial
nos colégios da rede pública, Instituto de Educação,
Pedro II, Colégio de Aplicação, estes na época eram
os mais visados, era bem puxado.
A aula de história da bela professora Marisa, cabelos longos, lisos,
quase negros, estilo Perla (essa fazia sucesso na época), era a de maior
ibope entre a garotada, não só pela beleza dela, mas pela forma
gostosa de transmitir as informações.
Voltando ao assunto.
Como a dona Marisa costumava falar quando dispersávamos em suas aulas,
lembro-me, como se hoje fosse, do dia em que ela começou a narrar sobre
os piratas. Após explanar o que definia piratas e pirataria, começou
a contar-nos histórias de piratas. Pouco sabíamos, acho que somente
das proezas do Capitão Gancho e olhe lá, então o assunto
ficou muito interessante. Tínhamos um colega de sala que sempre quis
chamar a atenção de todos, por se achar o mais rico daquela galera
classe média. Bento, em outras aulas, já havia sido parente do
Marquês de Pombal por parte de mãe, do Visconde do Rio Branco por
parte de pai, resolveu desta vez que alguns de seus antepassados haviam sido
piratas.
Roubou a cena da professora e com uma enorme euforia começou a narrar
as aventuras incríveis de seus primos em vigésimo grau, cometendo
mil maldades, afinal pirata tem que ser muito mau, né?!
A professora tentou com seu jeito meigo voltar à pauta da aula, mas Bentinho
não permitia e extrapolou geral, persistindo em falar da coragem e audácia
dos seus primos piratas. Muitos roubos, muitas mortes.
Crueldade exposta como vantagem. Rios de tesouros legados a sua família.
E a gente com nove, dez anos, acreditava em quase tudo.
Em um certo momento, afirmou que piratas não choram nunca, mesmo ficando
meses isolados do mundo em alto-mar et cetera e tal. Tinha tão cedo adquirido
o conceito, ou melhor, o preconceito contra as lágrimas masculinas.
A dona Marisa, sempre muito tranquila, aproveitou o gancho (não
o capitão) e disse:
- Os piratas, por viajarem muito tempo e conviverem somente entre homens, muitas
vezes acabam por praticar a homossexualidade. A sala destacou-se pelo silêncio.
Não se ouviram risos, mesmo porque a professora conduziu o assunto com
seriedade.
Se fosse hoje teria dito ao Bento com ironia:
- Se piratear já é crime, olha mais um motivo para não
fazê-lo.
Acho que não teria dito nada não, pois tenho certeza de que o
menino naquele dia aprendeu muito mais do que imagina. Aprendeu que basta ser
Bento da Silva e que pode chorar o quanto quiser.
Chorar até porque não se é mais criança.
"Eu daria tudo que eu tivesse
Pra voltar aos dias de criança,
Eu não sei pra que a gente cresce
Se não sai da gente essa lembrança..."
Ataulfo Alves