Era um comprido velho, magro, de longos braços, pendentes como esses
ramos dos pinheiros, que as gravuras representam debruçados às
escarpas, sobre catadupas, ou sobre abismos. Rigorosamente trajado de preto,
cismador e melancólico, produzia-me o mesmo efeito das lutuosas árvores
das paisagens setentrionais.
Ao lado dele, em violento contraste de cor, vestida de branco, numa toilette
refolhada de musselina, com um laço negro, a prender os cabelos, caminhava
uma menina.
O velho acariciava a criança, sob um olhar de ternura; a menina com a
cabeça muito voltada, porque o velho era alto, sorria para ele e segurava-lhe
a grande mão descarnada nas suas pequeninas, alisando-lhe com amor os
dedos, delicadamente.
Aproximaram-se.
O velho, apesar dos cabelos brancos, não o era tanto, de perto, como
me parecera, à distância. Dir-se-ia encanecido pelas neves de um
inverno precoce, adiantado pelos dissabores da vida; a que resistira, entretanto,
a relativa frescura da fisionomia.
A menina era graciosa, mas feia. Devia ter sete anos. Aparentava trinta, com
aquele arzinho de senhora e o rosto moreno, magro, de maçãs pronunciadas
e os olhos rasgados, pensadores, como desiludidos há muito dos enganos
da infância.
Passaram por mim; o velho cortesmente, cumprimentou-me com uma inclinação
de cabeça. A criança imitou com graça a cortesia do velho.
À primeira curva da alameda, sumiram-se, devorados por uma escura garganta
de bosque.
Vi-os, essa vez, no Passeio Público. Tornei a vê-los no dia seguinte.
Vi-os depois, todos os dias, por muito tempo, até que, mudando-me para
longe, deixei de visitar, pela manhã, o deleitoso Jardim do Boqueirão.
Agora, há dias, dez anos decorridos, passando casualmente, de bonde pela
rua do Passeio, às 8 horas, às horas do flânerie
matinal do outro tempo, deu-me vontade de entrar no jardim.
Caminhando ao acaso, satisfeito de sentir a brisa do mar, que chegava muito
fresca, através das árvores; e o festivo sol domingueiro peneirado
dos ramos, traçando arabescos dançantes na areia, ao acaso, fui
dar com o banco de pedra onde outrora sentava-me e do qual via passar o velho
alto, de braços pendentes e ar melancólico de pinheiro das montanhas,
com a criança de branco, de sete anos e grandes olhos pensadores...
Como fazia, outrora, sentei-me e fiquei a pensar nas cousas todas do meu passado
que se ligavam à recordação dos passeios, tornando a ver,
em toda a realidade representativa da cisma, o velho de preto a passar e a criança.
Assim estava eu, quando senti que alguém pousava a mão sobre o
meu ombro.
Volto-me bruscamente. Um homem estava ao meu lado. Sentado como eu, olhava-me.
E quem havia de ser?! O velho!... o velho dos meus antigos passeios! O mesmo
homem de preto, magro e alto com a mesma expressão desolada das árvores
dos montes!...
- O senhor! exclamei, com um espanto fácil de calcular.
- Eu mesmo, caro senhor... Reconheço-o, tal qual o senhor me reconhece.
- Parabéns ao acaso, que me fez encontrá-lo... uma pessoa que
conheci em dias agradáveis do meu passado!...
- O seu encontro, infelizmente a mim, só me desperta recordações
amargas...
- Recordações amargas...
- Recordações dolorosas... Tão dolorosas que me levaram
a importuná-lo... É quase doçura a confidência dos
pesares... E o senhor que me viu com ela bem pode compreender-me... Lembra-se
da menina?...
- Lembro-me... aquela gentil criança...
- Tão meiga, tão boa... morreu!... A minha Ema...
"Quando, outrora, nos encontrávamos aqui, eu vinha com ela a passeio...
Queria distraí-la da lembrança da mãe, que tudo, tudo em
casa recordava... a pobre morta que me deixara a inocente... Aquela filha era
a minha vida. A luz daqueles olhos bania as sombras da minha sorte. Minha pobre
alma vivia naquele raio de olhar como vivem as cores do íris, numa réstea
de sol.
"Nasci na roça, muito longe do torvelinho detestável das
praças... Os olhos da criança, profundo espelho das minhas saudades,
mostravam-me o brilho das manhãs da minha mocidade... Eu via-lhe dentro
das negras pupilas, a vivenda alegre de meus pais, a verde paisagem onde correram
os meus folguedos de menino, a revoada das narcejas sobre a lagoa...
"Morava solitário e triste numa rua estreita e escura. Nos dias
chuvosos, vivíamos num crepúsculo desagradável. A lembrança
de minha mulher e dos dias felizes da família, cruciava-me especialmente,
nesses dias anuviados... Pois, era bastante um olhar da minha adorada Ema, um
olhar! e as tristezas fugiam; das nuvens de chuva coava-se para mim um dia claro...
Que se espessasse a valer o teto de chumbo da borrasca!... Para mim fazia sol!...
No ar vibravam sutilmente, ao longe, notas de música, oscilantes e vagas...
Nos olhos dela eu via o céu imenso e as andorinhas, muito alto, em chusma,
brincando como sorrisos no azul.
"Ema valia todo o meu passado... Eu que apreciei a leitura e que fui amigo
de acompanhar, do meu sossego, a novidade dos acontecimentos, o rumor da vida,
nada mais lia que os poemas daquele olhar, nada mais observava que a vida intensa
daqueles olhos queridos... Ema era a minha vida presente, como o meu passado...
"Morreu!...
"Também foi bom... A pobrezinha era feia... Morreu aos dezesseis
anos. Vivia triste de se achar feia: ninguém havia de amá-la;
tinha-lhe amor o pai; mas, pobres das que não são belas! era isso
bastante?... Ema gostou de morrer: morreu sorrindo...
"Entretanto, Deus sabe, que magia celeste lhes morava nos olhos, que paraíso
inefável Ema guardava ali nas pálpebras, onde eu às vezes
me perdia extasiado, como se, realmente, se me soltasse o espírito para
uma região alheia a este mundo, vasta, ilimitada, suavemente iluminada
por um clarão difuso de estrelas."
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