Ora, para que havia de dar-me a mania!... Lembrei-me de amar uma velha!...
A gente chega a saciar-se de tudo, até do vinho quente da juventude.
Em amor, uma das cousas apreciadas é o amor que custa; pelo menos, o
amor que precisa que o busquemos para vir: mil vezes mais apreciado que o amor
que vem ao nosso encontro. Maomé, com certeza, não se arrependeu
de ir até a montanha. Ora, a juventude é assim. Tem o defeito,
em amor, de vir ao nosso encontro. Há o instinto, nos seios rijos da
virgindade, que os impele a esmagar-se, amassar-se, emolir-se, de encontro ao
peito que se lhes acerca.
A grande idade é já esquiva.
O verão passou. Tem uns dias de sol, como o inverno os tem. Mas, são
sugestões tranquilas da saudade. Os sóis, Os grandes sóis
passaram.
Quem sabe? Haverá, talvez, um vivo prazer em ir a gente abrir uma réstea
estival de claridade no firmamento nublado desses dias! Espera, S. Medardo,
padroeiro dos dias úmidos... guarda o aguaceiro um pouco... que eu vou
mandar àquela pobre, de presente uma nesgazinha de bom tempo...
Tomei a sério a minha intenção.
Logo ao terceiro dia, aliás à noite, achei o meu ideal.
Velha, velha, velha, velha...
Imaginem um belo ideal de cabelos brancos, curvo e tremulo, de carnes tenras
entre galantina e faisandé.
Dous olhos negros brilhavam como alcaparras em cima daquela iguaria branca.
A minha atenção fervorosa atraiu a dela. Daí a Pouco, seguíamos,
trocando olhares. Os dela - de curiosidade, naturalmente.
Mais de perto, com a iluminação pública pude ver-lhe dous
cachinhos em espiral gamenha de saca-rolhas, que lhe faziam voltas de S aos
lados da fronte.
Com a vista firme, percebi que aqueles caracóis prolongavam-se sutilmente
pela velha adentro; enrolavam-se num sorriso que ela tinha nos lábios
e iam até à alma, envolvendo-a como a cauda cansada de um velho
demônio aposentado.
Abordei-a.
- Não vê que sou respeitável? replicou ela com certa gravidade
benevolente.
Respeitável, até veneranda... disse eu comovido, recuando um cumprimento.
E pus-me a caminhar em silêncio ao lado dela (que não se apressou)
olhando para a ponta dos meus sapatos que alternadamente eu batia com a ponteira
fina da bengala.
Os lampiões iam passando... Embaixo de cada lampião, eu aproveitava
o gás, para ver a minha velha. Não estava de má cara.
- Acredita na simpatia? perguntei.
- O que chama simpatia? perguntou-me.
- E a aliança que prende duas pessoas a um simples encontro, sem porquê
nem porquê não... Vem do grego syn, com pathos, afeição.
Este grego foi de uma infelicidade a toda a prova; mas, com uma velha, em amor,
não há perigo mesmo em falar grego.
Depois, novo silêncio. Os bicos de gás. da calçada vinham
de tempos a tempos iluminar o nosso silêncio. Eu estudava de esguelha
a minha aventura.
Aventura, vejam lá! Quem me visse ao lado daquele camafeuzinho com quem
eu ia, supor-me-ia, entretanto, um numismata a passeio com o seu museu, ou algum
jovem fidalgo (permitam) que estivesse a arejar a sua árvore genealógica.
- Então o senhor simpatizou mesmo comigo?
- Sim, respondi-lhe eu, que andava a mil léguas com a imaginação.
Sim, minha senhora: do grego syn, com pathos, sentimento.
Ela repetiu a pergunta. Eu respondi-lhe com um sorriso tímido. Daí
para diante encaixamos definitivamente um no outro, dous silêncios afetivos
do melhor efeito. E fomos.
A minha árvore genealógica, depois de muito tempo, voltou-se para
mim e, a meia voz, como se concluísse uma doce frase, cujo princípio
lhe ficara no espírito, falou:
- Vou para casa...
Não lhes posso fazer o retrato da fisionomia que, naquele momento, um
bico de gás iluminou-me. Era a ternura, a. gratidão, a surpresa,
o prazer, e mesmo a lascívia, quem o diria!... Eu senti, oh! vulcões
extintos! o corpo inteiro da velha flamejar num incêndio que lhe passava
a saia de seda, que me passava a roupa, como um bafejo de fornos, que me bafejava
a carne.
Era isso mesmo que me enchia a imaginação havia momentos. Tinha
encontrado o sonho. Uma mulher que passava, na sua velhice, esquecida do amor,
esquecida do sexo, na idade positiva e anestésica das desilusões.
Quando a criatura não é mais que um tubo digestivo por corpo e
um terror por alma, o terror da morte que ai vem; quando, ao abandono de cousa
imprestável, em que todos nos deixam, soma-se o raivoso egoísmo
com que nos agarramos a nós mesmos, esquecidos dos semelhantes, porque
a nossa questão não é mais com a vida, que lhes diz respeito,
mas apenas com a morte, que só diz respeito a nós; quando a febre
religiosa é a única energia moral e o calor cibário o único
entusiasmo físico; quando a descrença e o egoísmo multiplicam-se
para abrir, em roda de nós, um espaço desesperante de solidão
e tristeza... Eu aparecer-lhe, fitá-la, pescá-la no fundo da lagoa
frígida dos seus anos; inventar então para mim um amor novo de
ressurreição; criar outra vez a mulher e fruir aquela segunda
virgindade; cuspir no adjetivo venerando, incendiar de paixão o amianto
rebelde dos cabelos brancos; assistir da torre do meu capricho triunfante, a
vasta conflagração do país das neves, ver, por um momento,
renascerem os enlevos, os êxtases, os delírios mortos surgirem,
como fantasmas, dos próprios restos, para saudar ainda uma vez o mundo,
num último clamor supremo do que vai perecer em pouco para sempre...
E colher para mim, aquela vasca do último entusiasmo, ouvir nos mais
distantes recantos da alma, ouvir e guardar na memória das sensações
raras todo aquele coro delicioso dos cisnes em agonia.
Velha, velha, velha, velha...
Ela era feia, pequenina, trêmula, muito branca, muito molezinha, muito
crespa de rugas, como a nata de leite soprada, fraca, e de andar vacilante,
certo andar balançado de patinha, que mal lembrava uma vivacidade possível
dos quadris de outrora.
Num momento, o andar consolidou-se. Ela começou a dar passadas grandes,
rijas, nervosas. Tomou-me o pulso. Dir-se-ia levar-me à força
para a casa, como um menino fujão. Eu era dela.
Perdeu as considerações. Passou bruscamente a prescindir da minha
vontade. Nem mais olhava-me. Levava-me ali como um objeto, quase brutalmente.
Havia de ser naquela noite mesmo, na bebedeira do momento. Amanhã tudo
estaria perdido. Era preciso não dar tempo à religião de
falar; não dar tempo aos cabelos brancos de pensarem em si; não
dar tempo ao moço de esfriar a fantasia. Era ali, naquele instante...
Tinha muito tempo para se arrepender... depois.
Quando chegamos à casa, depois de andarmos não sei quantas ruas,
devia ser tarde. A casa foi uma rótula de venezianas, que eu vi recuar
para um buraco negro. Entrei. Faltou-me o pé. O soalho era mais baixo
que a rua.
- Não caia! há um degrau, disse-me a velha.
Eu não via mais a velha. Na imperceptível claridade que chegava
da rua, entrevia o meu braço, a minha mão, um pouco de outra mão,
e depois a escuridão espessa. Parecia que a escuridão puxava-me.
O ar frio encanado denunciou-me um corredor. Deixei-me conduzir pela escuridão
no ar frio.
De repente, do fundo de um aposento invisível, alguém tossiu.
Eu estremeci na mão da velha.
- Não faça caso, balbuciou-me ela ao ouvido. É a minha
filha... que sofre de asma...
Pouco adiante, uma porta de vidraças vagamente clareada fez-me deter
o passo. Um homem escarrou.
- Não faça caso, segredou-me a velha... Meu neto dorme aqui com
a mulher...
Adiante ainda rangeu manhosamente o choro de um menino.
- Não faça caso... É o meu bisnetinho...
Outra criança rompeu em choro para acompanhar a primeira.
A velha não me disse se era o tetraneto...
Pois, senhores, fala-se em juventude... primavera... primavera... fala-se em
verão... Não acreditem, meus amigos, não acreditem no inverno.
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