A Garganta da Serpente
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Desceu redondinho

(Rosa Pena)

Dar aula sempre foi o meu maior prazer e também, por vezes, meu desafio.

Formei-me muito cedo e comecei em classes de alfabetização, onde realizava-me com os miudinhos. Delícia sentir aquelas fofuras descobrindo as letras. Depois da faculdade, afastei-me deles, apesar de considerar que foram esses aluninhos meus verdadeiros mestres.

Bem, o fato é que, durante toda a minha vida, dei aula, para primeiro, segundo e terceiro grau.

Por volta de 1990, afastei-me da sala de aula e fui trabalhar na Secretaria de Educação do Rio de Janeiro em projetos educativos. Mas a saudade falou mais forte e aceitei o convite para dar aula em um colégio particular, em horário alternativo.

Lá chegando, deram-me uma turma de sétima série (equivalente ao antigo terceiro ano ginasial), considerada uma turma difícil. Daquelas turmas que ninguém quer pegar, visto que as escolas adoram dividir os alunos em os que tiram notas boas e vão render propaganda ao colégio e os que aparentemente não querem nada, mas que dão lucro à escola, com suas repetências.

Conheci Daniel na "pior "turma do colégio. Com dezessete anos, fazia cada série em dois anos. Ele e os colegas eram o terror da escola.

Daniel era o folgado, abusado e temido líder da sala. Fazia aquele gênero que se vê em filme, onde se tem o fodão na cela do presídio. Respeitado até pelos guardas.

Logo no primeiro dia de aula, querendo avaliar o nível de aprendizagem da turma, mandei que fizessem uma redação. Considero a redação o melhor termômetro para medir o nível de um aluno. Vi as caras feias e, para aliviar o clima, dei um tema bem light: escrever sobre um filme que tivessem visto e gostado.
Meu rosto, apesar de simpático, demonstrava claramente que eles iam ter que fazer sim, com ou sem vontade.

Entre conversas e bolinhas de papel jogadas, começaram a fazer e aos pouquinhos reinava o silêncio. Demoraram de propósito, então terminou o tempo e recolhi as redações, para ler, corrigir e comentar na próxima aula.

De noitinha, sentei-me com um pote de pipocas e fui ler a redação e a alma de meus novos alunos. Desfilavam por mim, na grande maioria, narrações de filmes de violência. De repente, surge uma. O título: Daniel, as mãos de pênis. Uma clara referência a Edward, mãos de tesoura, com a diferença que o protagonista, Daniel, tinha dez pênis, e a explicação dele, aliás muito bem explicada, era a de que, como adorava mulher, gostaria de ter um harém, e suas mãos satisfariam as mulheres aos lotes. Tive a certeza, naquele momento, de que tinha em mãos três fatos: um desafio de força, sabia que ele queria medir minha reação; um menino rebelde ; e um artista em potencial ,visto o poder de criação.

Li, reli, corrigi e coloquei um "BOM!!!", no final.

Na aula seguinte, encontrei a turma com risinhos, pois certamente o líder já havia narrado sua façanha aos seus asseclas. Avisei que entregaria e comentaria as composições no final da aula.

A turma ficou um tanto sem graça e fez-se um certo silêncio. Reinava a expectativa de um esporro ou um castigo. Procurei dar uma aula gostosa, falando de propagandas de TV, da linguagem apelativa delas. Sabia da ansiedade da galera, e estiquei ao máximo o assunto.

Faltando dez minutos para o final, peguei as benditas redações e comecei a falar sobre elas.

Busquei a parte boa de cada uma, ressaltei a originalidade e, no meio de tantas, propositalmente - não iniciei e muito menos finalizei com o "mãos de pênis" -, falei do texto de Daniel.

Disse-lhe que a ideia e o desenvolvimento estavam excelentes, mas que estava mal-informado na questão de agradar às mulheres. Tanto na quantidade, quanto na qualidade do sexo.

Avisei-o de que uma, apenas uma mulher, às vezes é o verdadeiro barato na transa, e que não se centrasse no pênis, pois sexo não se resumia à penetração. Onde ficaria o carinho do antes, durante e depois da relação?

A turma ficou muda. Daniel deu-me um sorriso cúmplice, daqueles que diz por si só- Alguém sacou finalmente qual é a minha.Ele nasceu um artista, um gozador dos costumes, precisava só saber seus limites.
Quem tinha sido testada, havia sido eu, e não fui reprovada.Agora eu podia ajudá-lo a administrar este seu lado.

Naquele ano, pelo menos em minha matéria, tive um bom índice de aprovação nesta turma.
No final do ano, saí da escola, pois não concordava com a filosofia da direção de dividir alunos por desempenho.

Nunca mais soube desses alunos, exceto do Daniel, que vejo pela mídia, atualmente um excelente executivo na área de marketing.

A Skol desceu redondinha, né, meu amigo?

  • Publicado em: 20/07/2004
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