Quando jovem ele catava frascos vazios no lixo da rua. Não encontrava
de refrigerantes, pois esses eram cascos que tinham valor na recompra. De perfumes,
a grande maioria, e ele adorava sentir a fragrância, imaginar quem foi
o dono. Cansei de vê-lo na rua sempre acompanhado de seu cachorro Marquês.
Dividiam o pão e conversavam entre eles.
- Este tem um cheiro delicado, deve ter sido de uma moça donzela. Este
outro aqui, nesse vidro grande, tem um odor forte, próprio de homem fraco
que não se garante só no sabonete. Já esse, que delícia,
tem cheiro de mulher madura dengosa.
Por mais maluco que o chamassem, pela mania de selecionar olores e imaginar
o perfil do usuário, eu achava que havia sentido em seu pensamento e
adorava ficar ouvindo o que ele falava. Cheguei a testá-lo jogando um
vidro vazio do perfume da Marlene, uma moça que trabalhou em minha casa
e era bastante pródiga com os rapazes. Quando cheirou deu o seu diagnóstico
ao fidalgo vira-lata:- Esse foi de uma dama da noite.
Um dia, escondida de meus pais, perguntei se ele era mágico. Respondeu
sério:
- Não! É que fica cravado o "cheiro" daquilo que somos.
Não tem jeito, a fragrância dedura. Pizza não tem cheiro
de pizza? Cada um é um. Ninguém é igual.
Peguei um bocado da mania dele. Quando eu entrava num elevador tentava descobrir
quem havia passado por ele. Perfume francês de dia? Passou uma perua por
aqui!
Ainda hoje, idoso por conta da vida e não pela certidão, ele continua
catador, só que agora de latas. O cachorro mudou, provavelmente o Marquês
morreu ou será que está de nova embalagem? Ontem passei por ele
e perguntei se tinha perdido a velha mania de cheirar. Ele sorriu com a boca
vazia de ilusões e disse:
- O mundo reciclou. Todos agora possuem o mesmo odor! Viramos enlatados com
cheiro de Coca-Cola e um sorriso, ainda que idiota, só pra fingir
que o mundo não perdeu o aroma de humanidade.
Olhei pro meu Sócrates de rua e conclui por ele:
- Tempo de clones onde as alfazemas perderam a vez, pois elas poluem o mangue
do sistema.