O telefone tocou. Ela atendeu, mas ninguém falou. Não ventava,
mas a penugem de sua perna anunciou mudança de tempo, não externo,
interno. Arrepios de calor.
Ela desligou depois de segundos de total silêncio, e quase imediatamente
tocou novamente. A voz apenas perguntou da onde era, e ela quase disse que era
da casa da mulher que o amava.
Ele, com pouca naturalidade, perguntou como ela estava. Como se responde a um
grande amor que o rio não tem mais ponte, que o perfume das flores está
vencido, que o pássaro emudeceu, que o mar não tem mais sal, que
São Jorge fugiu da lua? Apenas disse tudo bem comigo, e contigo?
Falaram do trivial, de som, de corrupção, de chuva, de frio, de
gripe.
A ligação caiu subitamente, assim como a intimidade deles havia
caído.
O telefone tocou novamente. Desta vez ela atendeu com vontade de gritar versos
e nomes feios. Meias de nylon, batom vermelho vieram a sua cabeça. Quase
sussurrando perguntou baixinho seu nível de importância na vida
dele. Ele respondeu que era muito. Amigos apenas, ela concluiu por ele. Mais,
bem mais, respondeu o dono da voz. A "antisupermulher" percebeu pela
primeira vez a intensidade do sentimento dele, o inaudível canto do guerreiro
que não pode se entregar por inteiro. Despiu as meias, e manchou o telefone
com o vermelho do seu batom. Nada mais conseguiu ouvir, exceto um eu te amo
dito baixinho por ele no final da conversa. Eu também, disse ela. Foi
a primeira vez, e talvez a última que ele disse as três palavras
mágicas.
Delicioso perfume de rosas espalhou-se pelo ar. O trinado do canário
ecoou pela casa, e a vontade de salgar o corpo nu no mar foi enorme.
Naquela noite de lua cheia, ela brindou aos amores imperfeitos, cheios de defeitos,
pois se perfeitos não é amor. Apenas São Jorge de testemunha.