A Garganta da Serpente
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Velhode

(Rafael Ottati)

"Meu testemunho será provavelmente o mais breve
e sem dúvida o mais pobre, mas não o menos imparcial
."
- Jorge Luis Borges, Funes, o Memorioso. In: Ficções.

Caríssimos, um bom dia. Fui convidado, e sinto-me honrado por isso, a falar em homenagem a alguém que me marcou; perdão, que marcou a todos nós aqui reunidos ao longo de inúmeras conversas interessantes, explicativas, elucidativas, em meio a muitos números. Um apaixonado por números, eu o descreveria. Não precisam sorrir, não foi uma piada. Foi de coração. Sabem que é uma verdade, não?

Não há um dia em que eu não pense nele como que ao meu lado. Relembro os dias em que eu era menor e ia à sua casa. Espero que você não chore ao lembrar disso. Era tão... estranho. Estranho. Isso mesmo. Não tem muita definição, meus caros. Soa como um crime ao seu ouvido? Aliás, estou falando em um bom tom? Conseguem me ouvir?

Voltando, é um crime usar palavras vagas relacionadas a ele, concordam? Logo ele, que tanto amou a exatidão dos termos, a exatidão dos fatos. Fatos.

Eu ia à sua casa em todas as minhas férias. Mamãe, que Deus a tenha, mandava-me para lá, pois achava que além de me divertir no rancho eu aprenderia muitas novidades. Curioso o emprego da palavra "novidade" neste contexto, não? Não, não, eu aprendia sim. E muito. Coisas que eu não sabia, que o colégio não falava, que o professor possivelmente nem desconfiava. Ele foi meu real professor. Mas não eram exatamente novidades. Eram coisas antigas. Coisas antigas que ele sabia de cor. E repetia. Cada vez que nos encontrávamos, no primeiro dia, ele, antes de me abraçar, por exemplo, mencionava o nome de todas as pessoas que haviam morrido naquele dia. Não apenas as mais importantes. Todas. Exatamente todas.

Eu também rio um pouco quando relembro isso, não se incomodem. Não é exagero meu. Realmente ele lembrava o nome de todas as pessoas mortas no dia em que eu chegava, independente do dia que fosse. Algumas vezes, claro, no curso de dez anos viajando para lá, eu já sabia alguns nomes de cor. E a lista sempre aumentava, afinal, todo ano pessoas morrem, certo? Os primeiros vinte e cinco minutos de conversa era um monólogo travestido de nomes.

Impressionante. Ainda me arrepio lembrando. A exatidão dos fatos, dos números, dos nomes, das letras que grafavam tais nomes. Um gênio no campo da Geografia, assim como nos outros já citados. "Como você não sabe onde fica o lugar x? Foi lá que houve a importantíssima Revolta Y, retaliada pelo Ditador Z, no dia tal, do mês tal, do ano tal." Ele já disse isso aos senhores alguma vez? Não consigo lembrar quantas eu ouvi. E era ótimo!

Ele nunca me perguntava sobre os fatos que eu aprendia ao longo do ano em que ficávamos separados, ele já os sabia. E isso era provado ao longo das conversas, ao longo dos novos nomes das listas, das novas datas. Eu percebia e sorria, espantado. Arrepiado, também, como já disse. Ele sabia tudo e tudo. Tudo o que era fato, ele sabia.

No entanto, ao contrário dele e por causa dele, talvez, eu não me interessei tanto por História. Entrava naquela biblioteca um tanto a contragosto e via aqueles livrões todos. Uma sala inteira com estantes do chão ao teto cheia de livros novos, à época, é claro, e antigos, alguns caindo aos pedaços. E ainda assim relidos constantemente. E a seção de jornais? Pudemos contabilizar, quando a desfizemos, mais de 232.400 exemplares, mas não lembro o número exato.

Eu entrava lá e ficava admirado, porque tinha tanto livro, tanta enciclopédia, livros didáticos e para-didáticos; livros em português e em mais vinte línguas que ele aprendeu para poder devorá-los. Parecia a esfinge da história que gostava de contar que comia quem não decifrasse seu enigma. No caso, comia os fatos. Alimentava-se deles. Depois regurgitava-os em cima dos mais próximos, curiosos (ou não), admiradores, súditos. Eu soube que alguns passaram adiante conhecimentos aprendidos com ele. Fizeram bem. Meu filho leu algumas daquelas enciclopédias, fazendo trabalho pra escola. Hoje em dia... bom, hoje em dia, infelizmente, nossas mentes não são mais fortes assim, desgastam-se com tamanha facilidade! Traças comem nossos neurônios, que estão sendo substituídos por placas de silício cada vez mais poderosas. Não existe mais a necessidade de sabermos as coisas. Achamos fatos perdidos tão facilmente, não é mesmo?

Ainda bem que tempos assim demoraram a chegar! Ainda bem que ainda posso lembrar, não sem me emocionar, de quando subia em um pé de maçãs ou qualquer outra fruta e ele vinha, ao longe, já vociferando fatos obscuros ou não acerca das cores das frutas daquela árvore ou do nome da árvore ou das pessoas cujas vidas foram cruzadas em algum momento por um fruto daquela árvore. Não riam, por favor. Não foi, afinal de contas, por causa de uma maçã que descobriu-se que as coisas todas caem? Não foi com nomes de árvores que algumas pessoas se protegeram dos seus inimigos e, por isso, continuaram vivendo? Não foi uma certa cor a escolhida pra bandeira de determinado grupo social porque diziam que ela criava uma sensação importante a eles?

Então, entendam que nenhum fato é desimportante. Nenhum fato deve ser menosprezado. Ele os defendia com veemência, caríssimos. Devotou uma vida a defendê-los. Conhecia-os na intimidade, tornava-se amigo deles, tornava-se parte deles, testemunha. Tenho certeza de que os senhores devem conhecer somente algumas dúzias de fatos. Ele sabia, de cor, todos. E demonstrava isso. Provava isso todo dia, a todo momento. Qualquer palavra, qualquer som; qualquer!, era motivo para que fizesse com que ele lembrasse de pelo menos uma dúzia de acontecimentos. Cada conversa com ele era um aprendizado de horas. Nenhuma durava menos do que uma hora. Porque nenhum de nós queria. Só por isso. Eu era ávido por aquilo. Ávido por ouvi-lo, por passar a saber.

Por isso eu convenci a dar os livros dele que não fossem enciclopédias: o saber tem que ser democratizado. Vemos isso na televisão todos os dias. Conhecimento tem que ser passado adiante. Os outros também têm que ter chance de sair da escuridão. Acho que aprendi isso com ele, também. Adorava ouvi-lo, já disse. E por ouvi-lo, lembro-me de adorar folhear as enciclopédias chinesas e árabes: tinham ilustrações maravilhosas! Bem ornamentadas, coloridas, chamativas. As americanas mais antigas pecavam nisso, a meu ver. E ficavam um tanto relegadas.

Não, não, eu só falo português e inglês. Ele ficou orgulhoso quando consegui traduzir uma página de uma dessas enciclopédias para ele corretamente. E me comparou a tantos ilustres intelectuais que também aprenderam essa língua anglo-saxã naquela idade que eu tinha, assim como citou tantas pessoas, listadas em ordem alfabética, morreram com a mesma idade que eu. Assim, eu tinha visão de vida e morte. De que as coisas têm fim. E que só ele seria imortal. Ele e os seus fatos. Adorava ouvi-lo. Adorava! E por gostar tanto de ouvi-lo virei músico. Meu próximo disco terá seu nome na capa e um mapa-mundi antigo, bem desenhado, como imagem da frente. Uma homenagem singela...

Voltando, muito me orgulhei em ser convidado a falar em seu nome. Agradeço imensamente. Ah, lembro-me de certa vez em que derramei um pouco de água no chão e ele, sorrindo, ofereceu-me um pano para limpar aquela pequena sujeira dizendo que um chinês previra, através de um copo d'água derramado, quando o mundo ia acabar; que o som da queda de uma gota d´água salvou a vida de um batalhão inteiro no meio de uma selva; que 35 políticos tinham seu nome com significados derivados da água em suas línguas de origem; e que era a palavra mais relacionada com nomes de revoluções, golpes políticos e batalhas, fosse pelas letras ou pelo som.

Por favor, acho que ele merece aplausos.

Obrigado, caríssimos. Obrigado. Como podem comprovar, estou orgulhoso de fato de estar aqui na frente dos senhores em homenagem a ele. Porém, este meu monólogo não é de todo feliz. E o pior que podia acontecer! Logo o pior! Ah, maldito destino! Rasgou-me o coração quando cheguei à sua casa e ouvi-o fazer uma pausa enquanto contava como e quando um homem percebeu que fios da camisa que vestia, parecida com a minha naquele dia, podiam ser usados para escapar da prisão e acabou tornando-se o maior feito de um preso daquela comunidade. O desespero tomou conta dele, seus olhos ficaram vermelhos.

Ás vezes, acordo com esta visão.

Ou com quando ele me cumprimentou duas vezes em uma manhã e recitou duas listas, ambas incompletas, uma em cada encontro, de cidades que ganharam mais do que uma quantia equivalente, acho, a dez mil reais, com a exportação dos ovos que eu comia, e de tribos que alguma vez cultuaram a galinha.

Ou com quando repetiu por quatro vezes o nome de um líder de Estado ao recitar quantos foram assassinados em um dia tão chuvoso quanto aquele. Ou com quando confundiu as estrelas que ajudaram tantas pessoas em suas inestimáveis e fantásticas empresas. Ou com quando começou a listar os compositores que compuseram um número de músicas igual a algum múltiplo do número de azeitonas no meu prato, mas terminou criando um conjunto de sons inexistentes na lista de sopranos que vestiram-se de verde em suas estreias.

Triste, não é, caríssimos? Pior é que há tantos outros exemplos! Tantos! E cada vez tornavam-se tão mais comuns e corriqueiros. Eu quis me suicidar quando percebi que meu professor da escola sabia um número de fatos maior do que ele. Como pode isso? Era uma decadência que ele não merecia passar em vida. O merecimento, porém, não é uma conquista, caríssimos, mas um acaso.

Em um dado momento, quando percebeu que possuía mais copos de cristal em seu armário, mais moedas internacionais em suas gavetas, mais selos em seus álbuns, mais pares de sapatos de materiais diferentes em seu armário, mais insetos extintos em seus mostruários de isopor do que fatos em sua mente, ele se desesperou ao extremo. E deu fim à escuridão que o esquecimento provoca.

Dói-me dizer que hoje faz cinquenta anos que isso aconteceu. Que há cinquenta anos não escuto sua voz contando tudo o que aconteceu neste mundo que não parecia tão vasto nem tão antigo assim. Que há cinquenta anos não me divirto nem me engrandeço por ouvir nomes ou datas. Que há cinquenta anos eu falo dele e só escuto risadas como resposta. O homem mais brilhante que conheci. O homem mais culto que conheci. Agora, por exemplo, se aqui estivesse, tenho certeza de que mencionaria quantas vezes e em quais locais um grupo com o mesmo número de pessoas aqui reunidas venceu um obstáculo difícil, fosse causado por pessoas ou pela natureza. Mas o agora é um pertence do ontem.

Ele me fez o que sou hoje, tenho certeza. Desculpe, mãe, não foi a senhora. Desculpe. Foi ele. Que a tudo conhecia. E através dos seus fatos, eu também passava a conhecer e me sentia íntimo de todas aquelas pessoas e lugares. Ele sabia tudo. E de cor. Merecia estátuas em sua homenagem, placas de ouro, pelo menos uma enciclopédia decente. No entanto, meu neto, que ali está e não me deixa mentir, não o estudou ainda no colégio. Seu professor de História, que descaso!, não sabe o nome dele. Nunca soube. A doença não apenas tragou com ela, de forma egoísta e possessiva, o que ele sabia, mas ele próprio! Ambos apagados da memória do mundo. Relegados ao limbo que ele lutou para que ficasse eternamente vazio.

Quero, por fim, deixar aqui meu comentário mais sincero: querido vovô, eu lembro.

E os senhores, caríssimos?

E os senhores?

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