- Deixaram a porta da igreja aberta! A velha catedral ainda guardava os segredos
do século 17. É de se estranhar que tivessem deixado a porta aberta
e as luzes ainda estavam apagadas. Exalava o cheiro das velas queimadas e das
paredes pintadas a cal. Já se passaram séculos e ela, ali, mostrando
toda sua impassibilidade diante o tempo. À frente da entrada observo
a madeira entalhada da pesada porta. Ainda existem as marcas do formão
de um grande mestre Toda sua estrutura eleva-se direcionando ao céu.
Alguns passos e vacilo sobre minhas pernas. Tomado pelo efeito do vinho medito
se devo adentrar pela igreja. Vagarosamente, como num filme em câmara
lenta, caminho em direção ao altar. Velas acesas.
O silêncio da catedral me faz voltar às recordações
passadas. Lembro-me da infância e do amor que nunca chegou. Em algum lugar
ela deve existir...
O Cristo parece sorrir da minha embriaguez, dos meus pensamentos. Os santos
também...
Tento encontrar a escada que me leva até ao sino...toda igreja tem um
sino...
Vejo uma porta e sinto que alguma coisa poderá ocorrer.
O silêncio é interrompido por um barulho de algo se deslocando.
Alguma coisa se mexeu . Escuto um miado. Aproximo-me e identifico um corpo encolhido
segurando um pequeno gato. Tento aproximar e ela se retrai . A presença
da moça ofuscava-me a razão. Vejo o brilho dos olhos do gato e
as pernas da moça (belas pernas! Por que será que a gente sempre
olha primeiro as pernas?) .Observo seu semblante: olhos claros, cabelos intonsos,
olhar de súplica . Cobre o seu corpo uma túnica azul e por cima
um manto da mesma cor. Na mão esquerda traz um gato, na direita um livro,
que , creio, deve ser um dicionário de latim. Pergunto quem era e me
responde:
- Amantes, amentes ( os amantes são doidos, ou seja, os que estão
sob um sentimento muito forte não raciocinam corretamente). Contraria
contrariis curantur ( contrários com contrários se curam ). Amor
omnia vincit ( o amor a tudo vence).
Iniciei um processo de elucubrações : Talvez fosse alguém
que tivesse passado por um convento. Seu conhecimento de latim, a túnica
azul, o manto, o lugar ( a igreja) , sua timidez , todos estes elementos denotavam
que deveria ter passado por um convento. Provavelmente se apaixonara . Seus
encontros secretos levaram-na a um pesado castigo, que, por sua vez, a deixara
ensandecida Seu mundo exterior se confundiria com o mundo interior e para se
expressar o vazio ocupado pela decepção comunicava-se em latim.
Quem sabe, talvez não fosse nada disso e ela fosse uma santa que se materializou?
( mente de bêbado pensa cada coisa...) Ou, talvez, seja uma louca que
achou um gato , um dicionário de latim e uma túnica azul. Vestiu
a túnica, pegou o gato, abriu o dicionário e decorou algumas frases.
Só.
Fiquei com a segunda hipótese: era uma santa.
Aos poucos pude observar que algo estava acontecendo: em breve tempo minha curiosidade
se transformara em algo interior e isto mexia com a minha maneira de ser. A
suavidade do seu triste olhar , o sorriso enigmático...A imagem que passava
pela retina dos meus olhos ia diretamente ao meu cérebro e não
conseguia pensar em nada Estava maravilhado. Pasmem: milagre! Eu estava amando
uma santa. Quis tocá-la mas o gato defendeu-a. (sempre achei que gato
tem alguma coisa com demônio) Sorriu, não sei se para mim ou da
minha demência ( já não sabia quem era o louco: eu ou ela?)
Fiquei ali com meu olhar entorpecido e não percebi que as velas apagaram.
De repente a santinha do gato transformou-se no nada. Na ausência de nome
o substantivo comum virou substantivo próprio. A santinha do gato virou
Santinha do Gato. Procurei por toda igreja. Pensei que talvez tivesse voltado
à forma de imagem. Em vão, não a encontrei.
Amantes, amentes! Começo a ter sono e adormeço.
Ao acordar minha mente se confunde. Imagino se foi real ou sonho. Uma ideia
fixa se concentra em um só ponto : nela - Santinha do Gato. Vou até
ao altar e peço desculpas ao Homem da cruz. Ele continua me olhando...
os santos também...
Retorno ao bar. Tento afogar no vinho o meu sentimento mas ele já está
contido em mim . É tarde.
A minha santa era uma deusa (Minha metáfora sugere uma hipérbole,
penso).Vários dias volto à catedral na esperança de encontrá-la.
Meses depois...
- Deixaram a porta da igreja aberta...
Meu coração dispara e lentamente vou caminhando, já imaginando
quem iria encontrar.
Vejo-a sorrindo para mim. Na mão esquerda o gato. Deixa no chão
o felino, caminha em minha direção e suavemente toca meus lábios.
Pronuncia algumas frases em latim e chama-me por um nome que não era
o meu. Não importo. Meus braços envolvem seu corpo. Ela me repulsa.
Digo-lhe:
- Não temais! ( Fico pensando se com santo também usamos o verbo
na segunda pessoa do plural, ou somente com Deus?). Uso metáforas e continuo
minha fala:
- Disseram que o vinho é o sangue do Moço da Cruz e o pão
o seu corpo. Estando meu corpo repleto de vinho também posso ser Deus.
Ela jamais entenderia o absurdo da minha mentira. Eu sabia que todo grande amor
começa com uma mentira. Talvez seu estado de imbecilidade não
chegasse a tal ponto. Sentia vergonha da minha mentira.
Seu olfato se desperta aguçadamente. Sente o cheiro de vinho do meu corpo,
olha para mim e sorri.
Cai a sua túnica. Uma energia toma conta de mim e ali mesmo o ato se
realiza. Cor unum et anima una ( um só coração e uma só
alma). Corpus et corpus ( corpo e corpo).
Antes que pudesse tomar consciência do meu pecado , observo ao redor e
percebo que ela já não faz mais parte da cena. Sumiu.
Retorno ao bar e não consigo beber. Até meu vício me despreza.
Já não bebo mais. Só consigo pensar na santa... O remorso
toma conta de mim. Como desejaria amá-la....
Não era preciso estar morrendo para começar a amar a vida...
Passaram-se vinte e dois anos...
Tenho sede e entro no bar para solicitar água. Olho para mesa lateral
e vejo alguns bêbados. Em pé uma figura chama a atenção:
um rapaz com uma pouco mais de vinte anos, me faz lembrar Santinha do Gato.
Novamente olho a mesa lateral e revejo os bêbados. São os meus
ex-companheiros.
- Ei turma! Lembram-se de mim?
Festa geral.
- Desce mais uma garrafa de vinho! (todos cantando) "Boemia, aqui me tens
de regresso..."
- Não! Não! Eu não bebo mais. Faz mais de vinte anos.
- Quem é o rapaz?
- Dizem que ele é filho de uma virgem irmã de caridade que ficou
louca. Falam que seu nascimento foi um milagre. Não teve pai.
Dos meus olhos desce uma lágrima. Peço uma garrafa. Rapidamente
encho o copo e levo até aos lábios. Ele olha para mim, faz um
gesto e o vinho se transforma em água.