A Garganta da Serpente
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Nhola vai morrer

(Roberto Márcio Pimenta)

Faltavam vinte e nove dias e algumas horas para ela morrer quando ele a conheceu.

Na primeira vez ele saltou do barco, fez uma reza branda, atravessou o muro e domou o brilho da lua. Logo após, esquivou-se dos cães, subiu no telhado onde passeavam os caranguejos e penetrou no quarto de Nhola. Rezou outra vez. Amordaçou-a, colocou a faca no pescoço e recitando Neruda a possuiu sob a luz tênue do luar.

Na semana seguinte os homens de negro vigiaram o sono de Nhola. Mas, na escuridão da noite se mesclaram às trevas e ele, possuído da vontade, disfarçado de sonho, veio como um vento tímido. Penetrou pelas frestas da janela, fez agrados e, outra vez, a possuiu.

Na terceira semana ela dormiu com o santo de argila sobre o criado e ele não maculou os escombros de sua velhice, nem tampouco se interessou pelos segredos de sua intimidade. E ali, ao seu lado, a imagem, como um habitante de barro aguardando o sopro de Deus, apenas resgatava os últimos resquícios de um corpo que ia morrer. Naquela noite ela olhou bem para a teia de aranha na parede branca, o santo ao seu lado, o vazio da cama e chorou pela sua ausência do pescador. Por conseguinte, permanecendo deitada, com os grandes pés expostos em um lado da coberta e do outro a cabeleira branca, Nhola dormiu, roncou e sonhou que Miguel era um arcanjo que fora expulso do paraíso a pauladas pelo assanhamento com as filhas de Eva. Cortaram-lhe as asas, deram-lhe um barco, uma rede, uma bilha com água potável e o colocaram no Mar dos Sargaços.

Nhola ainda estava a juntar remendos de sonhos quando algo bateu três vezes na janela.

"- É ele!" - pensou ela - com o coração disparado, as mãos trêmulas e um calor subindo pelas pernas. Deste modo, tão logo se refez, girou a tranca e abriu a janela que dava vista para o mar. Decepção. Era apenas uma gaivota que anunciava a volta do pescador.

Ainda era noite quando Nhola resolveu descer até a praia e perguntar ao moço que contava estrelas se ele vira o pescador chegar. O contador de estrelas, com os dedos cheios de verrugas, respondeu:

"- Não entendo dos mistérios dos que chegam... Apenas vejo o que está no céu e posso afirmar que o seu não é um bom signo." - e dito isto apontou para o mar onde havia um barco voltando e continuou contando estrelas.

Nhola deu três pulos de alegria.

O tempo passara desde a primeira vez. Restava somente um dia e queria vivê-lo como se fosse o único momento de sua vida. O pescador retornava e ela chorava de emoção. E na areia, com a água batendo na canela fina, a coxa bamba em volta do osso e alguns pêlos dourados, ela abriu os braços e aguardou. Miguel encostou a embarcação na pedra grande, nadou até a praia, desnudou-se e correu em direção a Nhola que sorria em seus poucos dentes. Ela imitou-o: deixou cair a roupa e o esperou ali, sob a paisagem alaranjada dos primeiros raios do amanhecer que surgia.

Quando ele chegou, ela se ajoelhou a sua frente, inclinou a cabeça, abaixou a mão, retirou algo da areia e... decepou-o. O sangue esguichou nos seus cabelos brancos. Numa mão a adaga, na outra o troféu. O corpo estrebuchando na areia...

Nhola morreu de tanto rir e disse:

"- Anjos não têm sexo."

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