A Garganta da Serpente
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A mina

(Roberto Márcio Pimenta)

Poderia até fingir que nada sabia sobre as fugas e saídas noturnas de Valkíria, entretanto, quando tentou desprezar-me com o professor de aramaico, prometi vingança. Não lhe pronunciei qualquer promessa de malefício. Nem tampouco deixei transparecer o meu plano: vingaria sem que ela percebesse, desforrando, assim, dos dois. Imaginei que isto não seria o essencial para mim. Teria que ser punida, mas sem qualquer vestígio para minha condenação e o grande prazer consistiria que , após a execução, ela saberia que eu era o autor.

É necessário que saibam que não deixei Valkíria, nem por um momento, duvidar da minha palavra. Continuei sorrindo na sua presença, enviando-lhe flores, comprando-lhe joias, como de costume, sendo que não percebeu que meu riso agora era de vingança.

Valkíria tinha um ponto fraco, embora fosse uma mulher digna de respeito e até mesmo notada na sociedade.

Vangloriava-se, junto às amigas, de ser uma mulher bonita, inteligente e ter a seus pés os homens que desejava. Nas artes cognitivas era um fracasso, mas, com respeito à arte de seduzir um homem, confesso, conseguia ultrapassar a todos que assim tentaram o desafio. Fator preponderante em sua personalidade era o gosto pelo ouro, dinheiro e a mania por títulos que lhe oferecessem status. Ocorreu a ideia de que, assim, poderia vingar tanto um lado, como o outro, usando-a, juntamente com o professor de aramaico, para tal fim.

Uma tarde, quase ao anoitecer, em uma sexta-feira, encontrei minha suposta amada em um restaurante à beira-mar. Acolheu-me com excessos de carinho, como quem quisesse dissimular alguma coisa. Percebi que no cinzeiro havia uma ponta de cigarro de marca diferente do que fumava, o que, para mim, significava que Jean, o professor de aramaico, estivera ali em tempo anterior à minha presença.

Fiquei tão feliz em encontrá-la que jamais imaginei que a beijaria como beijei, naquele instante.

- Querida - disse eu - que sorte poder encontrá-la hoje! Como está bonita! Talvez mais do que nos outros dias. Tenho algo a lhe contar, mas quero que a sua felicidade seja compartilhada com a minha. Acabamos de herdar um tesouro na Espanha. Após sucessivos estudos nas anotações do meu tio-avô, Don Diego Fernandez de La Sierra Nunes de Ávila, descobri onde encontrar os documentos que poderiam comprovar o meu parentesco com este nobre fidalgo. Na última viagem que fiz á Espanha adquiri tais documentos e, deste modo, consegui provar, junto à justiça Espanhola, que sou o único herdeiro, ainda com vida, de linhagem direta de descendência de Don Diego Fernandez. Assim, coube a mim os seus manuscritos e dinheiro suficiente para o resto da vida, pela indenização do castelo que ficou para o Patrimônio Histórico da Espanha. Estudando tais manuscritos descobri a passagem secreta de uma mina de ouro, cuja entrada fica no túmulo de Don Sebastion de Ramires Ortega Nunes Ávila, o pai, no cemitério do castelo de Don Diego Fernandez.

- E você já comprovou a veracidade de tais manuscritos?

- Não só comprovei como estive nesta mina, na última viagem que fiz à Espanha.

Segundo a crença na cidade, Don Diego Fernandez, mantinha o segredo da mina trocando seus empregados e matando-os, a fim de que o segredo fosse preservado. Há muito ouro ainda, mas como toda abundância provém do trabalho e economia ou da astúcia que advém de uns sobre os outros, confesso que há impedimentos: existe uma porta de pedra, cuja parede pesa toneladas, o que nenhum homem seria capaz de mover. Mas existem instruções escritas na parede da porta de como fazê-la abrir, porém, amada minha, está escrito em aramaico. Assim, para tal encomenda, pensei em convidar o Padre Lucas por ser um dos raros conhecedores de aramaico.

- O Padre Lucas nunca! - disse Valkíria elevando o tom de voz. Imagine que , sendo sacerdote, pode requisitar o dinheiro para a igreja, uma vez que a mina está sob o cemitério e a morada dos mortos pertence a Deus. Além disto, meu querido, ele não conhece tão bem o aramaico quanto o meu amigo Jean. Posso lhe assegurar que tal pessoa é digna de inteira confiança. Não obstante, há imbecis que acham que o Padre Lucas pode competir com Jean. Impossível.

- Minha doce e nobre Valkíria, além do segredo da mina, poderíamos confiar em Jean quanto a nossa fortuna?

- Muito mais do que no Padre Lucas.

- Então, minha querida, contrate os serviços de tradução oferecidos pelo Professor Jean e providencie nossas passagens para a Espanha para a próxima semana.

Valkíria providenciou passagens, hotel, carro e tudo o que servisse de motivos para se ausentar, o que, provavelmente, utilizou como fim para seus encontros com Jean, o professor de aramaico.

Chegamos à Espanha à tarde, quase ao anoitecer, e um funcionário do hotel já nos aguardava.

Pela manhã, partimos em direção ao castelo, onde um dia um ascendente de minha família, em um tempo, habitara. No caminho observei a troca de olhares, como eu já suspeitava, entre Valkíria e Jean.

Ao chegar no cemitério observei que a névoa encobria as catacumbas, o que dificultava identificar o mausoléu de Don Sebastian. Valkíria tinha os olhos brilhando, como se estivessem reluzindo, e repetia sempre a mesma palavra - ouro.

Assim falando, Valkíria, sob os olhares de Jean, tomou-me pelo braço e nos dirigimos ao mausoléu de Don Sebastian, após confirmação da identificação. Pus uma máscara protetora e envolvendo-me no sobretudo deixei-me conduzir pela amada até os primeiros degraus. Após penetrar no interior do mausoléu retiramos a tumba de Don Sebastian e observamos que ali começavam os primeiros degraus que nos levariam ao ouro. Fomos descendo cada degrau sentindo o forte cheiro de bolor que impregnava o ar. Tomei três velas oferecendo uma para Jean, outra para Valkíria, acendi a que me restou e conduzi-os, curvados, por vários compartimentos, passando por escoras de madeiras , até encontrar archotes que substituíram as velas acesas. Continuamos a caminhada entre as paredes lodosas e úmidas até que Valkíria emitiu um grito. Eram ratos que passavam sob nossas pernas. Disse-lhes que, se observassem melhor, viriam que as paredes estavam repletas de baratas e os pontos brancos amontoados nas passagens eram esqueletos dos empregados mortos por Don Diego Fernandez. Pela luz do archote percebi o medo estampado nos rostos de Valkíria e Jean, entretanto ao ouvir a palavra ouro piscavam os olhos e sorriam

- A porta está longe?- perguntou Valkíria

- Já descemos muitas jardas, falta pouco - respondi aguardando o momento para desfecho desta história .

Jean contentava-se em observar Valkíria e continuava trocando olhares, como se tivessem , entre si, um código e, pela primeira vez, no caminho da mina, disse:

- Estou vendo, à frente, uma parede ao fundo deste caminho. Ao lado pás e picaretas . É a porta?

- Sim, meu nobre Jean! Todos os seus anos de estudo de aramaico decidirão o nosso futuro. Nosso destino pertence a você.

Jean aproximava o archote bruxuleante da porta, mas a luz era fraca o que me fez entregar o meu archote para Valkíria a fim de que se aproximasse também da porta. Afastei-me sem que percebessem e ouvi a voz de Jean dizendo:

- Está escrito: " Aquele que busca o ouro como fim, terá no ouro o seu fim".

A uma certa distância coloquei a mão na parede e das reentrâncias da parede puxei a alavanca. Do teto desceu uma grade que aprisionou Valkíria e Jean. O barulho da grade descendo provocou susto nos amantes, fazendo-os girar o corpo em minha direção. Jean, estupidamente perplexo, arrancou do bolso um revólver e apontou em minha direção. Então lhe confiei um segredo: havia retirado as balas enquanto dormia, à noite, no hotel e que aquele lugar só seria vistoriado depois de vinte anos- o tempo exato de cadeia em que eu permaneceria se os tivesse matado. Isto caberia, agora, aos ratos.

Aguardei, inutilmente, qualquer resposta a esta provocação.

Confesso, copiei o autor. Usei o mesmo ardil que tantas vezes usara Don Diego Fernandez.

Virei-me de costas ouvindo gritos e choros, e segui meu caminho em direção à saída pensando no ouro dos tolos.

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