A Garganta da Serpente
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A empregada

(Roberto Márcio Pimenta)

Eu estava me banhando na salmoura com flores de maracujá quando um vento imundo jogou barro na vidraça. Cansado e por mais limpeza a fazer me queixei às paredes:

"- Meu corpo não aguenta mais! Carece de um esforço menor.Preciso de uma empregada."

No outro dia, como se o vento cagueteiro lhe tivesse contado os meus segredos, ela chegou. Pediu-me o emprego e ficou assentada na soleira aguardando minha resposta.

A bunda grande, carnes firmes sobre as pernas roliças, bons dentes, canela fina e pés grandes foram indícios para acreditar que a moça fosse de boa serventia para o emprego. Combinado o salário, contratei a empregada.

Nos primeiros dias, como um furacão, ela tirou tudo do lugar, varreu, lavou e secou. E não disse nada. Apenas, de vez em quando, deixava escapar um sorriso e um gemido tão triste que me fazia lembrar as cantigas de ninar defunto no deserto.

Deste modo os dias passavam e comecei a perceber que ela não dormia e nem tampouco interrompia a faina para descansar. Mas o que achava mais estranho era o seu jeito de levantar a cama comigo ainda dormindo, colocá-la nos ombros e, com a outra mão, varrer a poeira depositada no chão. Dispensou a máquina e lavou toda roupa da casa. A do vizinho também. Depois, só para se divertir, a de toda a vila. Acendeu as velas da casa, as da igreja e, depois, as dos mortos no cemitério. Passou pelas ruas e becos acendendo e apagando, limpando,varrendo para,mais tarde, encerar a sala, varrer o quintal, as ruas, e, em seguida, lustrar as catacumbas. Como se não bastasse, espantava os morcegos do sótão,da rua e da lua, pintava à cal as paredes, cultivava os girassóis, desfazia a magia das rosas e condenava a vida das urtigas.

Em poucos dias a vizinhança começou a perceber as alterações nos arredores e começou a segui-la. Por onde passava, alguém lhe fazia chacota e riam de se poder contar os dentes, mas ela continuava eufórica com o trabalho.

Foi tanta euforia que a gorda Diná se sentiu incomodada e, não se contendo em suas banhas,disse:

"- Isto é coisa de maluco!" - com o que Walfrido, o gigolô da Narlene, concordou fazendo sinal com o dedo polegar e emendando:

"- Maluco do demônio! Onde já se viu trabalhar deste jeito? Só pode ser no inferno... Tô fora!" - e sorriu sendo aplaudido por alguns bêbados que acabaram de acordar.

A gorda Diná, querendo retomar a palavra, estendia a mão, mas foi vaiada várias vezes, e, mesmo assim, continuou emitindo gritos histéricos de "- Louca! Louca!". O que fez a empregada começar a chorar engolindo golfadas de ar.

Entretanto, como passava por ali naquele momento, pude interceder em defesa da minha funcionária. Xinguei a gentalha, fiz gestos e nos retiramos sob aplausos dos bêbados.

Chegando em casa conversei sobre seu procedimento, seu excesso de trabalho, suas coisas. Só deste jeito, pela primeira vez, ouvi sua meiga voz, tão suave quanto o Bolero de Ravel. Neste dia, então, percebi o quanto era bela.

Tempos depois eu a encontrei rindo no seu quarto e lhe perguntei o motivo de tanto riso, ao que ela respondeu:

"- Lembra-se...rá,rá,rá,... da gorda Diná?...rá,rá,rá... Passei o maior susto nela...rá,rá,rá... Já imaginou?...rá,rá,rá...Quando ela acordar?...rá,rá,rá....E ver que cortei sua cabeça ...rá,rá,rá... e guardei no armário...rá,rá,rá,rá,rá,rá..."

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