A Garganta da Serpente
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Deitado no quarto escuro

(Roberto Márcio Pimenta)

Duas horas da manhã. O som do telefone intercepta meu sono.

Tento levantar. Meu corpo não responde aos estímulos sensoriais. O cheiro de sangue putrefacto fere-me o olfato e, assim, me provoca náuseas. Minha cabeça faz um giro e vomito sangue. Blasfemo contra Deus, o diabo e o maldito vício. Começo a crer que o diabo não tem chifres e rabo. Tem a própria forma do cigarro, nada de chifres. Quero gritar, mas a enfermeira foi embora. Ao lado da cama a luz da vela começa a ficar tênue. Estico meu braço esquelético e atendo ao telefone que não pára de tocar.

- Alô! - O som de sua voz parecia me hipnotizar.

- Oi ! ( meu " oi" era uma mistura de "ai" e "oi" - parecia mais um gemido de um moribundo do que um "oi". ). Estava eufórico e a respiração começava a ficar ofegante.

- Amor, estou ligando a esta hora porque estou morrendo de saudades . Ela chora. . Eu preciso de você - um soluço melancólico acompanha o "de você".

Fico pensando na sua última crise de depressão: comprimidos prosac, hospital, terapia , prosac e prosac.

- Mas e o Rodrigo? Não está morando com ele?

- O Rodrigo nunca foi o meu forte. Na realidade sempre gostei foi de você. Apenas usei o Rodrigo para custear minhas despesas. Afinal, mô ( como era gostoso ela me chamar de mô ...) fiquei com o Rodrigo só para poupar você de pagar minha pensão. Fiz isto porque amo muito você. Todo meu sacrifício foi por você. Amor, agora você já pode ficar com o Fiat 147 que o Rodrigo me deu. É seu, todinho seu.

- E o Silveira?

- Que Silveira?

- Aquele jovem grandalhão, cheio de músculos . Foi mal. Você me trocou por aquele monte ...

- Que isto, mô? O Silveira ... outro engano. Imagina: você ficava na plataforma 21 dias e eu precisava me exercitar para ficar perfeita para você. Por isto tinha que malhar na academia. Exercitava sempre para você, somente para ficar com você, amor da minha vida.. Acho que você está duvidando de mim ...(choro)

- Não é bem isto, sabe, as pessoas falam, a gente fica pensando... o capeta atenta.

Escuto sua voz sumindo. Sinto frio. Por alguns segundos imagino que ela está comigo ali. Mas e o Alcântara? Maldito Alcântara...

- Tá legal! Acredito em você.. mas diga que negócio é este: Viram você no motel várias vezes com o Alcântara, o engenheiro que construiu nossa casa.

- Ó mô, como é maldoso! Fui com o Alcântara ao motel várias vezes, sim senhor. Foi somente para ver os banheiros. Viu como ficaram bonitos os banheiros da nossa casa? O Alcântara é tão prestativo que até levou a planta da nossa casa. Pergunte ao Alcântara se não foi só isto.

- Puxa! Agora começo a entender ...

- Não existem homens no mundo, mô, só você ( ela estava chorando).

- Viu, isto é coisa do capeta, do chifrudo, do coisa ruim... Como pude duvidar de você...

- Mô, estou até frequentando a igreja do nosso bairro, aquela que tem um pastor parecido com ator de novela ... Ele é tão prestativo que já foi a nossa casa para tirar o capeta do nosso quarto... um enviado de Deus...

- Que bom, querida! Só você.... anjo...

- O cartão vai acabar... beijos... amo você..

Ficou a voz do silêncio

Olho para luz da vela e vejo o seu rosto. Na minha mente o som da sua fala continua ecoando entre as paredes do quarto como uma canção. Vomito sangue novamente. O lençol sujo de vermelho me faz lembrar nossas núpcias. Pego o meu testamento e escrevo: TUDO PARA ELA.

A vela apagou-se. Continuo deitado no quarto escuro. . Fico pensando:

- O diabo não tem chifres... é o cigarro.

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