Duas horas da manhã. O som do telefone intercepta meu sono.
Tento levantar. Meu corpo não responde aos estímulos sensoriais.
O cheiro de sangue putrefacto fere-me o olfato e, assim, me provoca náuseas.
Minha cabeça faz um giro e vomito sangue. Blasfemo contra Deus, o diabo
e o maldito vício. Começo a crer que o diabo não tem chifres
e rabo. Tem a própria forma do cigarro, nada de chifres. Quero gritar,
mas a enfermeira foi embora. Ao lado da cama a luz da vela começa a ficar
tênue. Estico meu braço esquelético e atendo ao telefone
que não pára de tocar.
- Alô! - O som de sua voz parecia me hipnotizar.
- Oi ! ( meu " oi" era uma mistura de "ai" e "oi"
- parecia mais um gemido de um moribundo do que um "oi". ). Estava
eufórico e a respiração começava a ficar ofegante.
- Amor, estou ligando a esta hora porque estou morrendo de saudades . Ela chora.
. Eu preciso de você - um soluço melancólico acompanha o
"de você".
Fico pensando na sua última crise de depressão: comprimidos prosac,
hospital, terapia , prosac e prosac.
- Mas e o Rodrigo? Não está morando com ele?
- O Rodrigo nunca foi o meu forte. Na realidade sempre gostei foi de você.
Apenas usei o Rodrigo para custear minhas despesas. Afinal, mô ( como
era gostoso ela me chamar de mô ...) fiquei com o Rodrigo só para
poupar você de pagar minha pensão. Fiz isto porque amo muito você.
Todo meu sacrifício foi por você. Amor, agora você já
pode ficar com o Fiat 147 que o Rodrigo me deu. É seu, todinho seu.
- E o Silveira?
- Que Silveira?
- Aquele jovem grandalhão, cheio de músculos . Foi mal. Você
me trocou por aquele monte ...
- Que isto, mô? O Silveira ... outro engano. Imagina: você ficava
na plataforma 21 dias e eu precisava me exercitar para ficar perfeita para você.
Por isto tinha que malhar na academia. Exercitava sempre para você, somente
para ficar com você, amor da minha vida.. Acho que você está
duvidando de mim ...(choro)
- Não é bem isto, sabe, as pessoas falam, a gente fica pensando...
o capeta atenta.
Escuto sua voz sumindo. Sinto frio. Por alguns segundos imagino que ela está
comigo ali. Mas e o Alcântara? Maldito Alcântara...
- Tá legal! Acredito em você.. mas diga que negócio é
este: Viram você no motel várias vezes com o Alcântara, o
engenheiro que construiu nossa casa.
- Ó mô, como é maldoso! Fui com o Alcântara ao motel
várias vezes, sim senhor. Foi somente para ver os banheiros. Viu como
ficaram bonitos os banheiros da nossa casa? O Alcântara é tão
prestativo que até levou a planta da nossa casa. Pergunte ao Alcântara
se não foi só isto.
- Puxa! Agora começo a entender ...
- Não existem homens no mundo, mô, só você ( ela estava
chorando).
- Viu, isto é coisa do capeta, do chifrudo, do coisa ruim... Como pude
duvidar de você...
- Mô, estou até frequentando a igreja do nosso bairro, aquela
que tem um pastor parecido com ator de novela ... Ele é tão prestativo
que já foi a nossa casa para tirar o capeta do nosso quarto... um enviado
de Deus...
- Que bom, querida! Só você.... anjo...
- O cartão vai acabar... beijos... amo você..
Ficou a voz do silêncio
Olho para luz da vela e vejo o seu rosto. Na minha mente o som da sua fala continua
ecoando entre as paredes do quarto como uma canção. Vomito sangue
novamente. O lençol sujo de vermelho me faz lembrar nossas núpcias.
Pego o meu testamento e escrevo: TUDO PARA ELA.
A vela apagou-se. Continuo deitado no quarto escuro. . Fico pensando:
- O diabo não tem chifres... é o cigarro.