A Garganta da Serpente
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Impressões acerca de um cello numa noite em Egina

(Ricardo Corrêa Miranda)

"The highland drums begin to roll
And something from the past just comes
And stares into my soul
It's cold on a tollgate
Where the Caledonian blues
Cold on a tollgate
God knows what I could do with you
"
Mark Knopfler, What it is

Da janela do hotel onde estou hospedado consigo enxergar uma praça; uma visão meio bucólica, pois existe uma construção que se assemelha muito aos coretos das praças das pequenas cidades do interior de Minas Gerais. Uns banquinhos com uns velhinhos conversando, certamente lembrando-se de tempos que eram melhores pelo simples fato de que podiam bater no peito e dizer com orgulho jovial: "Tenho a vida à minha frente."

Foi com esse tipo de pensamento que me dirigi ao saguão do hotel para obter informações sobre o festival de queijos programado para à noite. Estava me sentindo estranho, um pouco melancólico, e trazia no peito uma sensação de sufoco que não conseguia explicar. Somente a antecipação dos queijos de cabra gregos conseguia trazer algum alento à minh'alma, embora em muito menor intensidade do que normalmente aconteceria.

De posse do folheto com os horários, pus-me a caminhar sem destino e respirar o ar marítimo de Egina, minúscula ilha grega onde resolvi me refugiar da estafante rotina de redação de jornal. Concluíra recentemente uma série de colunas sobre a culinária chinesa e agora, com o trabalho terminado, estava aproveitando as tão merecidas férias. Escolhi a Grécia como ponto de partida - e não há dúvidas que o fato de considerá-la uma das três cozinhas mais tradicionais do mundo ocidental teve seu peso nesta escolha.

Entrei na sala de jantar do hotel exatamente às sete horas. O banquete seria servido dali a uma hora, mas ansioso como estava, desci com antecedência. Sorte, pois pude escolher uma mesa estrategicamente localizada junto à parede de vidro. Pedi um vinho, deixando a responsabilidade da escolha para o mâitre; ele certamente saberia me agradar, além de com isso ganhar sua cumplicidade para o resto da noite, e talvez com um pouco de sorte, até o fim de minha estadia naquele aprazível local.

A noite estava linda, com uma imensa lua cheia refletida em sua plenitude pelo sonolento mar, do qual tinha uma boa visão. Alguns barcos ancorados no deck próximo bailavam mansamente, sinal de que a brisa noturna devia estar fresca e amena. Uma cena para ficar gravada na memória, mas que me apunhalava de uma maneira doída. Alguma coisa ainda me perturbava, impedindo-me de relaxar como planejara. O jeito era procurar pensar em outra coisa. A apresentação musical que tinha início naquele exato instante veio bem a calhar.

No palco, um pianista nos presenteava com uma peça suave e sinistra ao mesmo tempo; talvez um Rachmaninov, ou mesmo alguma peça de Ravel desconhecida para mim. As suítes iam num crescendo angustiante para atingirem seu ápice em momentos tensos, quando impunha notas mais graves; e depois entravam em allegros que me dilaceravam, nos chamados diminuendos. Nestes, a predominância era a melodia suave e sensivelmente mais rápida, liderada por notas mais agudas e menos drásticas. Fechei os olhos e me deixei levar, esperando que a música expurgasse de mim aquela sensação de vazio, que ocupasse meu espírito com sua grandiosidade. Em vão.

Ao fim da peça, percebi-me cansado; deixara-me levar longe demais, precisava recobrar a consciência. Ainda um pouco desnorteado, assaltado por lembranças que julgava sepultadas, tomei um gole do vinho e fui abrindo os olhos aos poucos; foi quando percebi uma silhueta feminina encaminhando-se na direção do cello. Estremeci. Não podia ser ela.

****

De uma só vez, toda a solidão anunciada pelos últimos dias veio à tona, e uma coisa incomum e indesejada começou a acontecer: voltei a ser assolado pela lembrança daqueles olhos azuis. Logo eu, que não nascera para vivenciar grandes paixões, grandes histórias de amor... Meu caso era com a gastronomia, com os grandes chefs e seus temperos; segredos não de alcova, mas de molhos. Era assim que eu vivia, e era isso que me preenchia a alma. Nunca senti falta de compartilhar sentimentos, juras de amor sussurradas na penumbra, da troca de fluidos entre gemidos. Contentava-me com os aromas e paladares finamente construídos por mãos hábeis em preparar orgias... gastronômicas.

Mas eu estava me lembrando dos olhos: vistos uma única vez, há três anos, durante a viagem à província chinesa de Urumgi, próxima à Mongólia. Estava fazendo uma pesquisa sobre a culinária local quando a vi, carregando um cello às costas. Sofisticada, charmosa, e possuidora de um par de olhos azuis deslumbrantes. Fiquei observando aquela figura estranhamente atraente a meus olhos - desacostumados a procurar arte e sedução em formas e curvas femininas -, a ir-se embora, sem que eu tivesse forças para esboçar algum tipo de reação. Mas agora eu estava em Egina, Grécia, e aquela imagem altiva e inspiradora voltava a preencher meus pensamentos. E por mais que eu não quisesse, o fato é que eu sentia saudades dela. De uma mulher que vi apenas uma vez, numa pequena cidade chinesa, olhos azuis que vieram e se foram depois de deixarem sua lembrança tatuada em minha memória. Era tudo o que eu não precisava neste lugar onde vim buscar tão somente a paz, materializada nos azeites extravirgem e nos numerosos queijos de leite de cabra que me aguardavam placidamente, sem exigir nada.

****

Tenso, ajeitei-me na cadeira e fiquei observando-a. Ela caminhou até o instrumento, sentou-se, e envolveu-o com suas pernas de uma maneira tão sugestiva, tão sensual, que não tive como ignorar. Olhei atentamente em sua direção, buscando seus olhos. Que, para intensificar meu susto, não podiam deixar de ser azuis.

Enfim, a dona dos olhos azuis, no mesmo recinto em que me encontrava. Não conseguia entender quais desígnios do universo conspiravam contra mim, deixando-me vulnerável daquele jeito, e em seguida colocando-me frente a frente com o objeto de minha angústia. Boquiaberto, sem saber o que pensar ou como agir, fiquei ali parado, aguardando nervosamente a apresentação começar.

No início, o som melancólico do instrumento mexeu comigo ainda mais do que supunha capaz: invejava-o, por ter à sua volta aquelas pernas despudoradamente nuas, saídas pelo vão da saia preta, e por ser o instrumento por onde a sensibilidade de sua dona se manifestava da maneira mais eloquente que eu poderia imaginar. A tristeza contida em meu ser, naquele momento, fazia par com a tristeza que emanava daquelas mãos suaves a moverem-se delicadamente sobre as cordas vibrantes. A partir daí, entrei num transe, e sendo assim, não tenho explicações racionais para a sequência dos acontecimentos que se sucederam.

A música começou a invadir o salão, e minha percepção era de que ela tocava só para mim. De olhos fechados, senti claramente o momento em que as notas começaram a soar mais vigorosas, após um período suficiente de preâmbulos que já deixavam evidente a intenção de apenas preparar nossos ouvidos para o concerto que viria na sequência. O piano acompanhava sem interferir no solo, apenas compunha, apoiava. Mas não havia dúvidas de que o centro das atenções eram os uivos lamentosos emanados de seu companheiro virtualmente animado ao seu lado por aquelas mãos tão ágeis, tão belas, tão delicadamente femininas. Não precisava abrir os olhos para saber como se moviam: percebia na alternância de sons graves e agudos onde se posicionavam, ora acima, ora abaixo, subindo e descendo, exatamente de acordo com as pulsações de meu coração. Cada nota emitida por ela era como um carinho em meus tímpanos, e não podia deixar de me emocionar e de sentir reações em meu próprio organismo. Estava inteiramente arrepiado, fato que por si só evidenciava fragilidade. Em situações normais, ficaria perturbado com isso, mas naquele momento não me importava em deixar as emoções tomarem conta de mim. Tornara-me uma marionete, cujos fios que dirigiam minhas atitudes eram as oscilações sonoras provenientes daquele instrumento diabolicamente sedutor, manejado tão habilmente pelas mãos do fantasma de meus últimos dias. Larguei-me à deriva, confiante, e senti-me sendo levado para locais onde nunca estivera antes, e que estimulavam meus sentidos de maneiras as mais diversas, que minha simplória mente jamais ousaria imaginar.

Comecei a perceber que a música chegava a um novo estágio: o ritmo se modificara sutilmente, já não era mais tão vigoroso, e então resolvi abrir os olhos: qual não foi minha surpresa ao encontrar aqueles expressivos olhos azuis voltados em minha direção. Senti ondas de arrepios percorrendo meu corpo, vibrando conjuntamente nas notas que agora se acalmavam, aumentado o tempo entre elas. Fomos nos acalmando simultaneamente, e eu já não sabia quem conduzia quem naquele dueto. O piano se silenciara, agora éramos apenas eu e ela. As batidas de meu coração, e os lamentos de seu instrumento.

Uma pausa, de alguns segundos apenas: fixei o olhar nela, e percebi - com alguma tensão ainda latente -, que ela também não desviava sua atenção de mim. Ah, a redenção: era o que eu sentia, e era o que captava agora na melodia alegre e insinuante que se reiniciava naquele momento. Senti-me envolvido por uma alegria, um torpor, como uma resposta muda ao evidente convite que me era dirigido através daqueles sons que começavam a soar excitantes.

Bebi mais um gole de vinho, e de novo olhei em sua direção: lá estavam os olhos azuis a me encarar. Não foi preciso ser muito perspicaz para perceber um sorriso cúmplice desenhado em seus lábios, que logo em seguida se apertaram um contra o outro, num reflexo ao rumo que a música tomava a partir dali. Mais uma vez, o ritmo foi num crescendo, até se tornar vigoroso novamente. Eu queria interferir, sentia a ansiedade mútua de atingirmos um máximo de excitação e envolvimento, de compartilharmos o carrossel de sensações que transitava eletricamente entre nós; encontrava-me retesado na cadeira, com as costas eretas, fazendo movimentos tensos com os braços como a reger os acontecimentos, deixando que as ondas sonoras invadissem minha mente e me conduzissem a um estado de enlevo tal que finalmente fui capaz de sentir o ápice chegando: brusco, com um longo e grave lamento sustentado por um tempo maior do que o normal. Fui relaxando aos poucos, enquanto a melodia transformava-se num inocente mas consagrado murmúrio. As notas foram baixando de tom, diminuindo, a tensão esvaindo-se, e meus olhos mais uma vez cruzaram com os dela. Uma lágrima escorria por seu rosto, suave e melancólica, gêmea da que se encontrava em minha face. Sorrimos ao mesmo tempo, e senti uma paz de espírito que jamais pude imaginar possível. Aliviado, abençoado, redimido, invencível: era assim que eu me encontrava.

Bebi a última taça de vinho, e finalmente, relaxei. Aquele inesperado dueto deixara-me fisicamente esgotado, e eu suava abundantemente. Minhas pernas tremiam levemente, numa gostosa sensação de bem estar físico e emocional. E era claro que ela sentia algo semelhante: passava a mão na testa na tentativa de disfarçar o brilho provocado pelo suor que também porejava em sua pele. Mas sua expressão era de tranquilidade associada a uma espécie de alívio. Parecia que ambos acabávamos de colocar para fora emoções há muito reprimidas - o que, no meu caso, era a mais pura verdade.

Acompanhei-a com o olhar quando ela se levantou. Caminhou em minha direção, e parou há poucos passos da mesa. Se fosse alguns minutos antes, eu provavelmente teria alguma síncope, mas agora já me encontrava controlado novamente. Tive a impressão que seus lábios chegaram a se mexer, como que se estivessem prontos a me dizer alguma coisa que eu desejara muito ouvir. Mas algo a conteve, e simplesmente seguiu seu caminho, na direção do saguão do hotel.

Ao longe, pude perceber que se virou, e parou olhando diretamente para mim. Despediu-se com um gesto quase imperceptível, ao que respondi com outro da mesma intensidade. Tenho certeza de que jamais tornarei a vê-la, mas também estou certo de que ela sabe que passei eras à sua procura - e se for preciso, recomeço esta jornada toda lá do início, quando ainda éramos outras pessoas que nem sonhavam em cruzar os caminhos numa pequena ilha grega, onde a brisa noturna traz um agradável aroma de mar, acompanhado pelos lamentos quase humanos de um cello que por alguns instantes invejei.

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