A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Buscando finais felizes

(Ricardo Corrêa Miranda)

"In a screaming ring of faces
I seen her standing in the light
she had a ticket for the races
just like me she was a victim of the night
"
Tunnel of Love, Dire Straits

A jovem dobra a esquina com seu vestido leve e esvoaçante e não percebe que um par de olhos passa a acompanhar cada passo seu a partir daí. O ritmo melódico de seus tamancos de madeira batendo no concreto, a ginga de seus quadris, os longos cabelos lançados pelo vento e mamilos duros indisfarçáveis sobre o tecido: tudo isso forma um quadro irresistível para o rapaz caminhando do outro lado da rua. Seus olhos de repente cerram-se num transe, e imagens começam a se formar, levando-o a um tempo que preferiria esquecer.

Por que ela está sempre se afastando?

Figuras femininas povoam seu imaginário agora. O problema é que, invariavelmente, estão de costas. Ele no centro, com as mãos escondendo as lágrimas que rolam copiosamente. Procura alguma solidariedade entre aquelas figuras que o rodeiam, mas é uma busca inútil. Sempre ignorado com um sorriso malicioso, e segue falando e chorando sozinho. Não entende porque está sempre tão só. Como um satélite vagando à deriva pelo espaço, isolado de tudo e de todos, esquecendo como se faz para viver em paz, como se faz para ganhar um pouco de atenção, girando e seguindo em frente numa jornada sem perspectiva. Mas sempre foi assim, desde que, garoto ainda, foi o único sobrevivente de um acidente que vitimou toda sua família. Foi encontrado abraçado ao corpo frio e mutilado da mãe, tentando encaixar de volta um pedaço da perna que fora decepada e repetindo sem parar que tudo ia ficar bem. Depois, crescendo na casa do avô inválido, servindo-lhe apenas de enfermeiro, trocando fralda geriátrica, dando sopa na boca desdentada. E o velho sem emitir uma única palavra, olhos perdidos em algum lugar do passado onde se refugiara para provavelmente sentir-se vivo ainda. E ele sentindo-se como o velho, sem forças para seguir em frente, para continuar a acordar dia após dia e ter ânimo de levantar da cama. E os sonhos que se repetiam: ela sempre de costas, indo embora, sem se virar para dar um tchau, para dizer mamãe te ama e vai morar com o papai do céu, um dia a gente ainda vai se encontrar no paraíso.
Seus olhos voltam do devaneio, e a figura feminina segue já quase fora de seu alcance. Não consegue correr atrás dela e dizer o que sente, a impressão que seu peito vai implodir só de chegar perto, sentir seu perfume adocicado de mulher, observar seus lábios se mexendo e emitindo um som suave e excitante ao mesmo tempo. Mas sabe que ela vai acabar se afastando, que vai embora sem se despedir como todas os outros fazem, sempre o deixando sozinho procurando pedaços mutilados de suas esperanças, catando migalhas de atenção, juntando os cacos de sua autoestima estilhaçados como pára-brisas espalhados no asfalto. Por isso segue caminhando, olhando para o chão, sem querer sentir vontade de falar com ninguém. De que adianta?, ninguém nunca responde, parece que está num vácuo onde o som não se propaga e não consegue se comunicar com ninguém porque ninguém o ouve. Nem o próprio pai, nasceu porque a tabelinha deu errado, tua mãe não sabe nem contar direito a porra dos dias. E ser o caçula de uma família que já perdera dois filhos não é para qualquer um. Super proteção é pouco, prisão domiciliar seria mais adequado. Pelo menos havia os livros. Um sótão cheio deles, de todos os tipos. Ficava lá, quieto, dia após dia, devorando tudo que encontrava nos caixotes, disputando com os cupins as páginas amareladas e esfarelentas. Ainda mais quando o pai chegava bêbado em casa, e ninguém escapava do cinto de couro. Nem a própria mãe, que se oferecia no lugar dos filhos e ainda levava-lhe o prato de comida na mesa, e depois deitava-se com ele. Sentia-se protegido entre os livros, pelo menos parecia que alguém estava falando com ele, contando-lhe histórias onde a vida parecia melhor. Tudo vai ficar bem, mamãe, papai não vai mais bater na gente. De vez em quando há finais felizes, eu sei, já li nos livros.

Continua andando pela rua, agora deserta. Olha para trás, a figura feminina já se foi há muito. Por que ela está sempre se afastando? Cada passo que dá agora aumenta sua dor, se sente mais só rumo a um futuro que não promete nada de melhor. Um futuro que remete ao passado, feito ônibus circular. Gostava de entrar neles de madrugada e ficar rodando, rodando, observando as pessoas entrarem e saírem, ocupadas com suas vidas solitárias sem se dar conta de que ele estava ali. Mas pelo menos vez ou outra alguém sentava-se ao seu lado, e podia sentir o calor de um corpo ao lado do seu. Deixava a perna deslizar para o lado só para encostar, nem se importava se era homem ou mulher, adulto ou criança. Queria apenas o contato, o calor, a sensação de encostar em alguma coisa feita de carne e osso que nem ele. Por isso que não se incomodava com os travestis que às vezes se sentavam ao seu lado puxando papo. Era bom se sentir desejado, nem que fosse por travestis. Só que logo desciam em algum ponto, e a conversa terminava sem haver chance de continuar. Até voltava a pegar o mesmo ônibus, a mesma linha no mesmo horário só para ver se conseguia reencontrar "casualmente" seu efêmero interlocutor e continuar o papo do dia ou da semana anterior. Mas os rostos nunca se repetiam nas madrugadas dentro dos ônibus circulares, e quando o sol apontava no céu a esperança de conversar com alguém acabava feito sonho bom, interrompido por um despertador estridente anunciando que a realidade chegou e os sonhos devem ficar guardados para continuarem na busca por seus finais felizes somente na noite seguinte.

Na rua, um gato foge assustado à medida em que se aproxima. Por que estão sempre se afastando? Até um animal irracional era incapaz de dedicar-lhe alguma solidariedade, tipo esfregar-se nas pernas ou conceder-lhe um olhar meigo. Nem mesmo aquele maldito gato. Peguei-o no colo para tentar protegê-lo do acesso de fúria de meu pai, e ainda ganhei um arranhão. Bicho idiota! Não via que eu só queria salvá-lo? Nem sei porque fazia isso, afinal, desde que minha mãe apareceu com ele lá em casa dizendo que pelo menos assim eu teria um amigo ele não se deu bem comigo; infelizmente, amizade não se compra. Mas eu estava lá com ele no colo, e meu pai berrava para entrarmos todos no carro, passei correndo tentando escapar de mais um golpe de seu cinto; e enquanto procurava preocupado minha mãe, o desgraçado pressentiu alguma coisa e saltou pela janela; correu até o muro, e lá de cima me olhou com aqueles olhos amarelos. Na hora não percebi, mas hoje sei que era um olhar de despedida. Ele sabia o que iria acontecer. Virou de costas, e deu um último salto para fora de minha vista e de minha vida.

A lua crescente começa a aparecer e a temperatura a se tornar mais agradável. Mas apesar de todo o calor do dia, nada é capaz de aquecê-lo. O frio intenso que sente não se combate com roupas de inverno ou sóis escaldantes, porque é um frio que vem de dentro. E quanto mais se sente só, mais frio, e quanto mais frio, mais só. Olha para a lua. A lua também estava crescente naquele dia. Sentado no banco de trás, escondia o choro com medo de apanhar mais, e deixava os olhos fechados para não ser obrigado a ver aquelas cenas deprimentes. Lembro ainda dos sons, a porta batendo, o cinto cortando o ar com um silvo, o estalo nas costas de minha mãe e um baque surdo. Em seguida, entram no carro, ela contendo o choro, tentando parecer forte. Chora não, vai ficar tudo bem, coloque o cinto, tá? Minhas narinas não tem nenhuma dificuldade em captar o cheiro de álcool que emana do banco da frente e impesteia o ar. O carro arranca com aquele som estridente dos pneus girando em falso, e o cheiro de borracha queimada se mistura ao da cachaça. Logo estamos correndo desesperadamente pelas ruas, não há sinais, não há cruzamentos, as pessoas nos olham aterrorizadas e saem depressa da frente, alguns xingam, e ele continua acelerando, está saindo fumaça do motor, algumas luzes se acendem no painel, minha mãe grita, eu grito, um murro nela mas ela não se cala, uma curva fechada à frente, os pneus gritam e não são capazes de segurar o carro naquela velocidade, mais fumaça, mais gritos e então o mundo gira, parece tudo tão calmo agora, uns sons metálicos e um poste que cresce, e cresce, e...

...

... sozinho, procurando pedaços mutilados de suas esperanças, catando migalhas de atenção, juntando os cacos de sua autoestima estilhaçados como pára-brisas espalhados no asfalto...

...

... vai tudo ficar bem, mamãe, existem finais felizes, eu li nos livros.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br