Quando abriu-se a porta, lá estavam todos. Como em uma reunião
desavisada. Ninguém sabia do paradeiro de outrém, mas a força
maior unia-os. Uma mulher ganhava destaque entre todos, estava exausta. A vida
se mostrando por gotas de seu suor. Era grande e com certeza liquidaria qualquer
um daquele meio se o quisesse. Não o queria. Em tempos passados vivera
feliz ao lado de um homem cujo sacrifício fora o de não ama-la
depois da descoberta. Tempos do campo pálido, a casa sem visitas. A lavoura
a não cobrir as despesas. Não precisava, agora, mostrar-se útil.
Vivera vida plena antes do fracasso.
Eis que a pequena reunião abriu-se para deixar passar um outro que chegara
de manso. Era velho demais para andar três ou quatro passos sem apelar
para algum apoio, porém andava. Andava sem dor, sem medo. Todos entreolharam-se
tentando achar no fundo dos olhos um sentimento de comoção. É
que o velho era cego.
Deram-lhe um lugar para sentar, não lhe fizeram perguntas, apenas presenciavam.
O elo se fortalecendo, o calor da chegada acolhida. O restante daquele pequeno
lago de olhos pálidos, presos na carne herdada, ainda esperavam de pé
perante a porta. Rostos murchos como uma pétala ferida ao sol. Não
já tinham esperanças grandes, mas a força maior falava
por todos.
A grande mulher soltou lágrimas. Copiosas lágrimas fizeram curso
em seu rosto inflado pela descrença. Fora feliz em tempos passados, e,
agora a figura do velho cego a comovia. Como podia andar daquele jeito tão
sem receio, tão sem medo. Era um Deus entre insetos. Nesse momento, alguém
acotovelou-a por detrás. É que já eram horas de entrar
na casa , se era uma casa, de fachadas brancas e fracas como um papel de seda,
mas intensas e grandes como as nuvens.
Entraram, como em um cortejo. E já dentro não era de se esperar
que não se dispersassem. E permaneceram juntos. O velho cego, a andar
leve, os passos leves e sem medo como os de criança que começa
a pratica-los. Poderia ele cair, ralar-se, entregar-se no chão escuro
da vida. Braços o levantariam? Quem sabe... As pessoas são mesmo
um mar de ondas inconstantes, ora levam, ora partem.
Cessaram-se as lágrimas daquela mulher que agora cerrava os pulsos para
tentar ver o sangue, que embora causasse dor, alimentava sua vida. Olhou mais
fixamente, as veias quase em parada. Não o viu, desesperou-se ainda mais,
sentou logo e acudiu os olhos para não chorar novamente. Fora feliz em
tempos passados, mas o que importava o passado? Se fazia-se do presente a sua
vida. E felicidade não era uma linha que se apaga e não se encontra
mais, era uma fonte de água pura e inviolável.
Todos olharam-na, percebendo o ponto culminante onde a descrença levou-a.
Até mesmo o velho sentira algo forte naquele momento. Era a força,
que não precisava de meios nem circunstâncias para prevalecer,
que não pedia voz nem visão para entender. Era simplesmente a
força maior. E o velho a senti-la, todos a senti-la. Deram, agora, para
o cego que acreditava no futuro e enxergava a esperança através
dos passos, um lugar na fila. Houve abraços de fraternidade e apaziguamento.
Esperavam por um lugar feliz na fila dos doadores de órgãos. E
pensar que o coração alegre nem sempre é o saudável.