Mara, 35 anos, morena bonita. Trabalhava numa grande empresa, área financeira,
planilhas, cálculos rotineiros, produção, custos, vendas,
ano após ano, que saco! Sua grande paixão foi Nicanor, executivo
brilhante da empresa, extremamente prático. Não sonhava com coisas
inviáveis. Fazia acontecer. Quando chegou, percebeu logo sua solidão
e tanto fez que aconteceu o caso entre eles. Sem demora, tomou conta do seu
coração, apossou-se da sua vida e a fez sonhar.
No início foi o prazer intenso que sentia com ele, depois a coisa foi
se acalmando e entraram na fase do diálogo necessário, compartilhar
os desejos, pensar projetos a dois. Aí descobriu como ele realmente era.
Ávido de poder, de subir, de chegar ao topo. Não sonhava com a
vida e sim com o trabalho. Muito educado, usava muito bem as pessoas, fazia
elas se sentirem motivadas a dar mais e mais. No entanto, ela descobriu, não
as estimava de fato pelo que eram e sim pelo que produziam para ele e para a
Organização.
Quando finalmente foi transferido para uma filial maior, ela não sentiu
muito a sua falta, porque já a sentia antes da partida. Ele foi, prometendo
manter contato, chegou a acenar com uma vida a dois, mas ela percebeu que ele
estava mesmo era tentando consolá-la e sair-se numa boa. Sentiu tristeza
e solidão, é claro, mas a dor passou mais depressa do que esperava,
ficou uma sensação de tempo e energia irremediavelmente desperdiçados.
Os telefonemas entre os dois foram se espaçando, depois cessaram por
completo. Ela desistiu primeiro. Desde então, sentia dentro de si apenas
um grande vazio em sua alma.
O ambiente no trabalhou ficou insuportável. Alguns colegas tinham até
pena dela, outros (geralmente mulheres) riam às suas costas. Passou a
lembrar, com frequência, da avó que a criara depois da morte
da mãe. Lembrava de seu sorriso doce, de seus conselhos, de como era
boa na cozinha, excelente doceira. Ah, as tortas, os bolos e especialmente os
sonhos que fazia! Tinha aprendido muita coisa com a avó. Ela sempre dizia
que tudo que se faz com gosto fica saboroso, mas tudo tinha a sua fórmula
certa, nenhum ingrediente podia ser em excesso nem em falta. Para dar o ponto
era necessário talento e sentimento. Questão de gosto apurado.
"Quem sabe fazer as coisas nunca fica na rua da amargura".
Tomou uma decisão corajosa. Negociou sua saída, recebeu a indenização.
Tinha também um dinheirinho que a avó deixou, coitada. Aí
montou o negócio dos seus sonhos. Uma lanchonete diferente. Achou um
lugar, não muito caro, perto de lojas e escritórios, somente duas
portas, mas com um bom espaço. O nome era sugestivo: "Mercado
de Sonhos". Um bonito letreiro, desenhado por um amigo publicitário,
despertava a curiosidade dos passantes.
Juntou a sua criatividade às receitas da saudosa avó. Lindas e
saborosas tortas, vários doces e salgados. Mas, o forte mesmo eram os
sonhos, até para justificar o nome, e eram realmente o de que ela mais
gostava desde a infância. Inventou diversos. A cada um dava um nome: "sonho
clássico", "sonho de uma noite de verão", "sonho
das mil e uma noites". Alguns misteriosos como "sonho proibido",
outros óbvios, como "abelha sonhadora", com recheio de mel.
Chegou até a criar um "pesadelo picante", com recheio apimentado.
Sonhos salgados, como o "sonho do mar", recheio de bacalhau e sal
na superfície em vez de açúcar, outros doces, como o "sonho
baiano", com cocada. Vendia também sucos e refrigerantes.
Nas paredes colocou paisagens remotas e românticas, em belas molduras,
de lagos e florestas, caminhos sombreados, cachoeiras e praias. As mesinhas,
redondas, com tampos de mármore rosa e pés trabalhados de ferro
fundido, davam um ar distinto. Sobre o balcão um mostruário envidraçado,
com vários produtos e pequenos letreiros com os nomes exóticos.
O som ambiente tocava suavemente músicas dos anos dourados.
A clientela começou a chegar. Havia uma grande afluência nas horas
de lanche da manhã e da tarde. A surpresa foi a quantidade de clientes
na hora do café da manhã, muita gente se atrasava e não
tomava café em casa. Aí veio uma ideia: numa mesinha, no
canto, colocou uma grande térmica com café e outra com leite.
Cada um se servia como queria, era gratuito, bastava comprar um sonho ou uma
fatia de bolo. Um sucesso fenomenal. "Ah, voinha, queria que você
visse como seus ensinamentos estão me ajudando!". Logo contratou
uma auxiliar, Carminha, que cedo aprendeu o que precisava. Também pudera,
o olho da dona sempre presente. As duas de uniformes elegantes. A clientela
aumentava.
A cozinheira, em casa, preparava tudo pela tarde. À noite, Mara completava
o trabalho e aprontava com carinho as coisas para o dia seguinte. Comprou um
carro. Ela mesma levava os produtos para a loja. Quase não tinha mais
tempo para nada, mas assim era melhor, pois não pensava muito na vida.
Encontrara uma substituta para a paixão: a realização.
Nos fins de semana organizava as contas, assistia um filme com alguma das amigas
que ainda restavam dos tempos da empresa, às vezes saia com um dos "rapazes
interessantes" apresentados por elas. Era tudo.
Quando o movimento era pouco, estudava as pessoas. Alguns entravam e já
iam fazendo os pedidos, soltavam exclamações e sorriam com os
nomes dos produtos. Outras eram perguntadoras, queriam saber as receitas. Alguns
tentaram conquistá-la. Outros e outras olhavam através dela, como
se não a estivessem vendo, como se fosse transparente ou nem existisse.
Essas pessoas pareciam ter sempre alguma coisa em vista, estavam à procura
de algo que não estava ali, talvez dinheiro, ou o reconhecimento de seu
imenso sucesso e da sua extraordinária importância, ou algo que
justificasse a sua existência, quiçá tão vazia. Davam
a impressão de ver os outros como objetos, não com desprezo, mas
ao mesmo tempo sem dar a mínima bola para o que eram ou o que sentiam.
Mara havia lidado com pessoas assim ao longo de sua vida, no antigo emprego
e até mesmo agora que, apesar do sucesso, não passava perante
muitos de uma mera balconista numa loja de doces. Essas pessoas geralmente queriam
os sonhos convencionais, aqueles clássicos, com recheio de goiabada.
Recusavam-se sempre a experimentar novos sonhos. Às vezes nem respondiam
quando ela oferecia alternativas.
Um dia alguém entrou em hora de pouco movimento. Nunca o vira. Curioso,
sem falar nada, olhou a vitrine com os produtos, as fotos nas paredes, os enfeites
tão caprichosos que ela tinha colocado como decoração.
Ela, pelo rabo do olho, acompanhando tudo. Era um cliente diferente; não
era bonito nem feio, nem velho nem novo, mas tinha um belo sorriso e bons dentes.
O que chamava mais a atenção era o olhar. Examinava cada coisa
com interesse, pensando talvez sobre o que estava por trás daqueles nomes
esquisitos.
Há pessoas que nos olham e parecem ver dentro de nós, como se
estivessem examinando as paisagens do nosso interior e tentando entendê-las.
Não parecem estar olhando apenas a superfície. Querem ver mais.
Esse era o olhar dele, sonhador, talvez um pouco triste.
Conversaram. Ele trabalhava perto, era arquiteto, pequeno escritório
com mais dois sócios. Gostava do trabalho, mas não podia se dizer
"um sucesso" no sentido que muitos atribuíam a esse termo.
Trabalhava duro, às vezes até durante a noite para entregar um
projeto ou estudo. A grana sempre curta, mas não ligava muito, queria
somente ter o suficiente para viver e mais um pouco para se dedicar aos seus
muitos interesses, que iam da música ao cinema e às viagens, sempre
em busca do seu interior. Tinha vindo atraído pelo nome, na verdade não
gostava tanto de doces. Ela, sem perceber, estava falando sobre sua vida, seu
dia a dia. Ele disse: "você produz sonhos, mas parece que não
sonha muito". Ela enrubesceu, como uma criança pegada em falta.
Provou vários sonhos de Mara, salgados e doces. Elogiou com sinceridade,
só não gostou muito do com recheio de pasta de gengibre. Aí
perguntou sorrindo: "você tem sonho de grandeza?" Ela respondeu:
"esse passou longe daqui". Ele sorriu com agrado. "Seus sonhos
são bem originais, mas está faltando um". "Qual ?"
disse ela. "Quem sabe, um dia eu lhe digo". Pagou e despediu-se sem
prometer voltar.
Surpreendeu-se, nos dias seguintes, espreitando a porta, como se esperasse ele
chegar. Nada. Uma semana depois, ele entrou de repente, dessa vez com um amigo,
talvez um dos sócios de que falara. Mostrou tudo ao outro como se já
conhecesse a loja há muito tempo. Conversaram mais, trocaram telefones.
Mais uma vez o seu olhar: parecia ver o quanto ela estava agitada por dentro
e quanto tinha pensado nele. Ah, insensato coração!
O amigo, com ar misterioso, parecia saber de algo que ela não sabia.
No dia seguinte recebeu a ligação. Foram ao teatro, depois jantaram,
tomaram vinho. Não paravam de conversar, tinham muito a dizer, todos
aqueles anos sem se verem, sem se conhecerem sequer. O cheiro dele era agradável.
Sentiu-se arrepiar, como não esperava sentir de novo.
Dois meses depois, passaram a viver juntos. Ela saia mais cedo da loja, aprontava
tudo logo, esperava ele chegar. Ele se gabava da melhor comida caseira que um
homem podia ter e da mulher mais romântica que podia ainda existir. Eram
felizes.
Um dia ela lembrou-se e perguntou qual o sonho que faltava no Mercado de Sonhos.
Ele disse brincando: "não percebeu ainda? Faltava o 'sonho de amor',
é claro!".
No dia seguinte, Mara não fez por menos: realizou sua mais nova criação,
o "Sonho de amor", com superfície caramelada e recheio de suspiro,
porque quem ama de verdade suspira pelo amado.