A Garganta da Serpente
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Voz do rio

(Renato Dutra Gomes)

"... Sua intenção é matar-me . Como se atreve a brincar assim com a vida? Cumpra o seu dever para comigo, e cumprirei o meu para com você e toda a humanidade" (Mary Shelley -Frankenstein)

Quanto a veracidade da historia que a seguir contarei, só posso afirmar que realmente a escutei de meu grande e único amigo, em um momento muito importante de nossas vidas. Mas de antemão já deixo claro, que não tomarei nenhum partido e também não expressarei nenhuma opinião pessoal, porque realmente eu não tenho nenhuma! Por isso deixarei a cargo de você leitor amigo, paciente e confidente, a elaboração de sua própria opinião.

Meu amigo J... era um rapaz de hábitos noturnos, em outras palavras: ele era boêmio mesmo. Certa noite ele saíra de uma festa realizada em um sítio as margens do rio Paraíba do sul , quando de repente seu carro, que não era muito novo, deixou de funcionar. J... olhou no relógio que estava em seu pulso, esperou um pouco até que os três braços com três relógios se transformassem em apenas um e notou que já era mais de uma hora da manhã, neste momento ele sentiu uma imensa vontade de urinar e ao descer do carro percebeu que estava exatamente no meio do nada , para qualquer lado que olhasse era a mesma visão: apenas mato e mais nada!

Após satisfazer a vontade de sua bexiga J... resolveu acender um cigarro e esperar a boa vontade de seu velho carro . "Tiglum": esse foi o som feito pelo maço de cigarros amassado que meu amigo jogou com raiva no rio.

- Quem está ai ? perguntou ele ao ouvir um barulho no matagal a sua frente.

- Quem está ai ? perguntou novamente, agora já fora do efeito causado pelo álcool, devido ao susto.

Não obtendo resposta meu amigo, que tinha alguns repentes de valentia, resolveu ir até o matagal verificar o que estava acontecendo. Chegando lá viu tudo o que queria ter visto naquele momento, porém, nada do que esperava ver naquele Local: o matagal estava vazio, não havia nada nem ninguém que pudesse emitir qualquer som.

J... sentiu um calafrio ao olhar para trás e percebeu que alguém, ou algo estava atrás de si. Um soco, esse foi o primeiro reflexo de meu amigo, porém o resultado disto causou grande pavor em meu amigo, pavor que pude presenciar em seu olhar no momento em que me contava essa historia.

O tão assustador resultado foi o fato de o braço de meu amigo atravessar seu antagonista que era formado por mato, barro e água.

O ser que estava postado diante de meu amigo desapareceu diante de seus olhos, como se o sopro da vida tivesse deixado aquele corpo que se desfez em pedaços da matéria que o formava, mas antes que J... pudesse pensar em alguma coisa, foi atingindo pelas costas e lançado a metros de distância e ao olhar para trás viu que o agressor era a criatura de mato e barro que desta vez estava ainda maior.

- Quem é você ? meu amigo perguntou - O que você quer de mim ? - Continuou ele.

A criatura se desfez no chão, assim como antes, em seguida reapareceu muito próxima de meu amigo e respondeu:

- Quem sou eu você pergunta ! A melhor pergunta seria o que sou eu ? A voz sepulcral que emitiu essa pergunta vinha de toda as direções como se J... estivesse dentro da criatura.

- O que é você então ? - perguntou meu amigo estático devido ao medo. A criatura não estava mais na frente dele, porém a voz sepulcral que vinha de todo os lados respondeu:

- Eu sou aquele que há muito tempo vem servindo os da sua espécie e como pagamento apenas recebe a indiferença e o descaso. Eu sou aquele que fornece o alimento e a vida e em troca vem sendo assassinado por você e seus semelhantes. Eu sou o espírito do rio que se revolta contra a humanidade !

Após essa, nem um pouco formal, apresentação J... esboçou uma tentativa de fuga, porém debalde, pois suas pernas e braços foram laçados por firmes touceiras de capim , deixando-o desta maneira preso e imóvel a mercê de seu antagonista.

- Torna-se fácil para vocês seres humanos sempre que têm algum problema viram as costas e correm, mas agora será diferente porque eu cansei de ficar quieto diante das agressões e resolvi me manifestar ! Disse a alma do rio - Vocês me tiveram como aliado e não souberam aproveitar e agora derramarei todo meu ódio em cima de vocês !

- Mas eu sou inocente ! Respondeu J... , trêmulo, quase chorando.

- Inocência, isso é o que todos vocês reclamam ! Todos se acham inocentes, desde aqueles que jogam o lixo de suas industrias em minhas águas até aqueles que jogam pessoalmente seus lixos ás minhas margens - Gritou à voz que vinha de todos os lados - Você não passa do modelo de sua própria sociedade viciada! Você

que jogou uma carteira de cigarros amassada em minhas águas, você símbolo do vício e do descaso vem me pedir clemência ? Continuou a voz.

- Desculpa - gritou J... chorando - por favor me perdoe que eu farei o máximo para ajudá-lo - continuou ele.

- Eu não quero, desculpas nem promessas, você errou e pagará pelo seu erro - Gritou a voz do rio aos quatro ventos.

Nesse momento meu amigo contou ter visto um galho de árvore lascado se aproximando - se de seu pescoço, pronto para furar-lhe a garganta. Então J... Percebeu que, quem ou o que quer que fosse, seu antagonista não estava brincando e nesse momento começou a rezar. Porém, o galho de árvore que o ameaçava caiu ao seu lado e o capim que o mantinha amarrado junto ao chão se soltou deixando desta forma meu amigo livre.

- Você terá uma segunda chance - disse a voz do rio em um tom ameaçador - Se você não cumprir sua promessa eu prometo que não ficarei mais quieto e que derramarei toda a minha ira em cima de você e dos seus ! O futuro de vocês está em suas mãos, agora só depende de vocês escolherem se me querem como aliado ou como inimigo - Continuou a voz.

No momento em que J... corria desesperado para o carro sentiu uma forte pancada na cabeça e caiu desmaiado . Na manhã seguinte, já com sol alto, meu amigo acordou todo suado dentro de seu carro e então pensou " foi só um sonho". Porém, ao olhar para fora percebeu que o mato onde supostamente ele havia enfrentado o espírito do rio estava amassado e o pavor tomou conta dele novamente ao perceber que o maço de cigarros que havia sido o pivô de toda confusão estava amassado e cheio de barro dentro do bolso de sua camisa.

Após essas constatações meu amigo desmaiou novamente e só foi socorrido horas mais tarde por pessoas que passavam por aquele local. J... foi levado ao hospital de onde ele não mais sairia, falecendo exatamente sete dias após sua internação. Em seu leito de morte meu amigo contou essa historia que agora eu reconto para vocês e eu fico pensando " até que ponto a imaginação de meu amigo propiciou o choque nervoso que o matou ou até que ponto a voz do não estaria correta ''.

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