A Garganta da Serpente
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O Senhor Dos Papéis

(Renato Dutra Gomes)

A Sociedade Do Papel

Não é incomum, uma criança receber notícias extremamente importantes para suas vidas, de forma tão repentina. Pode acontecer de várias maneiras. No caso de Zeca (digamos que seu nome seja José Carlos, mas a maioria das pessoas com esse nome são apelidadas de Zeca, então passaremos a chamá-lo assim) não foi diferente, ele, ainda com seis anos de idade, brincava na varanda de sua casa, quando, de repente, sua mãe chegou com a nova notícia:

- Você vai começar a estudar este ano, Zequinha (é normal as mães apelidarem o apelido, geralmente mudando-o para o diminutivo, por isso o uso do nome Zequinha).

José Carlos, Zeca, ou Zequinha (tanto faz, vocês escolhem como querem chamá-lo) primeiro ficou atônito com a notícia, depois curioso, e só mais tarde muito, mas muito mesmo, assustado com o novo mundo que teria de enfrentar.

Após um mês, Zeca entrou na primeira série do ensino fundamental, porém já com sete anos. Na escola percebeu que o novo mundo que enfrentaria não era tão assustador quanto imaginava, porém poderia ser muito mais perigoso do que o esperado. Neste novo mundo, Zeca percebeu a existência de seres monstruosos, muito parecidos com ele, só um pouco maiores, capazes de devorá-lo, ou coisa pior: colocá-lo no cesto de lixo, Zeca só não percebeu que com o passar do tempo se tornaria exatamente igual aos monstros que o colocavam no cesto de lixo. Era a evolução normal da vida.

Papel, essa foi a principal descoberta de Zeca na escola, não que o papel não fizesse parte de seus momentos mais íntimos, mas foi só na escola que percebeu o quanto poderia ser útil e perigoso o tão simples papel. No perigoso mundo em que Zeca passava parte de seu dia (a escola) o papel era algo impossível de se evitar, nele sua presença era registrada, resumindo sua presença a um simples "presente", nele Zeca levava para seu mundo (sua casa) tarefas, que ocupariam grande parte de seu tempo, prolongando desta maneira o fantasma do outro mundo (a escola).Também no papel, Zeca tinha a difícil missão de transcrever seu conhecimento em algo estranhamente denominado "prova".

O tempo passou, e Zeca chegou a oitava série do ensino fundamental contando já com quatorze anos de idade. O papel, há algum tempo, já se tornara uma rotina na vida dele. As tão temidas provas não eram mais um problema, não que ele tenha descoberto a importância do estudo, mas sim porque descobriu que um papel, bem pequeno, muito pequeno para que professora não o pudesse ver, poderia ajudá-lo a ir bem nestes testes, que acabavam por não testar nada, graças a essa pequenina ajuda. Mas o papel não tinha apenas a serventia de provar ou burlar, ele também podia ser usado para colecionar desenhos ou fotos (esses papéis eram chamados de figurinha) também podiam ser usados para enviar ou receber mensagens, do tipo" Te pego lá fora", ou mensagens um pouco mais amenas tais como "Quer namorar comigo", que geralmente recebiam como resposta um outro bilhete escrito "Não". O papel também podia ser usado como uma arma mais direta, se amassado e untado com saliva (bolinhas de papel).

Mais ou menos concomitante a este momento, Zeca descobriu a importância de um outro tipo de papel, o dinheiro. Este espécime de papel que era dotado do mágico poder de transformar desejos em realidade, pelo menos na visão de Zeca, porém esse tipo de papel era muito difícil de se conseguir, "deve ser por isso que o mundo inteiro vive em função dele" chegou a pensar Zeca.

Com a adolescência veio também o desejo e a curiosidade pelo sexo oposto, porém Zeca era só um pirralho, então o jeito foi apelar para papéis especializados, o que causou certo constrangimento para ele:

- Meu garoto, esta revista eu não posso vender para você. Mas busto por busto, será mais educativo, para você, a compra desse livro de história, que traz o busto de Minerva e muitas outras coisas educativas para um rapaz tão jovem quanto você - Essa foi a resposta dada pelo dono da banca de jornal a Zeca, em relação a compra do papel especializado.

A adolescência, assim como a infância, veio, deixou marcas e se foi. Com a chegada da fase adulta Zeca, realmente, descobriu que vivia em uma sociedade dominada pelo papel: era um papel para provar que ele existia, outro para dar-lhe direito de voto, mais um para permitir que dirigisse, e

muitos outros papéis, um para cada coisa que Zeca quisesse, e é lógico, não poderíamos esquecer do papel dotado de poder de compra. Nesta sociedade dominada por papéis, Zeca também se tornou um mercenário.

Nesta mesma época, Zeca descobriu a existência de um papel que poderia render-lhe muitos papéis dotados de poder de compra, porém esse papel, conhecido como diploma, custava muito dinheiro. Convencido de que possuir um diploma não seria um gasto, mas sim um investimento, Zeca retornou aos papéis recheados de conhecimento (também conhecidos como livros) para recuperar o conhecimento perdido no colégio, graças aos pequenos papéis utilizados durante as provas.

Passar no vestibular não foi tão difícil, não mais difícil que pagar a matrícula da faculdade, nem mais difícil que conseguir todos os documentos para a mesma. Pagar a matrícula foi só o primeiro problema de Zeca, problema que a cada mês aumentava. Por esse motivo, ele teve que começar a trabalhar, para conseguir pagar as mensalidades.


As Duas Torres

Zeca começou a trabalhar em um escritório, como ajudante geral, mas esse lugar mais se assemelhava a uma Torre de Babel do que um local de trabalho normal. Todos queriam algo, porém nem todos falavam a mesma língua. existiam aqueles que só falavam a língua da produtividade (esses eram raridade) , outros que só falavam língua do puxa-saquismo (desculpem-me pelo termo, mas não dá para descrevê-los de outra forma), a maioria falava a língua da preguiça, mas o dialeto pelo qual todos, por bem ou por mal, todos conseguiam se comunicar, não podia deixar de ser outro senão: o dos papéis dotados de poder de compra (o dinheiro).

O local onde Zeca trabalhava era exatamente uma Torre de Babel, porém esta não era a única na vida dele. A faculdade, na qual ele estava matriculado, era outra Torre. Neste local existiam representantes de todos os campos da ciência, o que não garantia o entendimento entre estes povos.

Todos estavam muito preocupados com seus próprios umbigos, que nem ao menos percebiam a existência de outras formas de conhecimento, não percebendo, desta forma, que, sozinhas, suas respectivas ciências seriam insuficientes para a sociedade e que seria preciso a união de todos os conhecimentos, de todas as áreas, para o pleno desenvolvimento do grupo social em que estavam

inseridos. Porém (sempre há um porém) nesta outra torre também imperava o "santo dialeto", dos papéis dotados do poder de compra, que para o povo, na mesma situação de Zeca, não passava de uma utopia, porque segundo a lenda (que de lenda não tem nada), todos os universitários são desprovidos desta espécie de papel.


O retorno

O convívio nas duas torres fez com que Zeca se tornasse cada vez mais mercenário, o que evoluiu para um grau muito elevado, fazendo-o apresentar alguns dos sintomas mais concretos desta doença, tais como: o desejo de guardar dinheiro, necessidade de não sair de casa (para não gastar o dinheiro), necessidade insuportável de ser promovido (para ganhar mais dinheiro), insensibilidade, petrificação do coração, satisfação em contar dinheiro, dentre outros sintomas, que fizeram que Zeca (agora conhecido como senhor José Carlos) fosse promovido na torre onde trabalhava, se formasse na qual estudava e principalmente ganhasse muito papel com poder de compra.

Um certo dia, José Carlos ia para o trabalho, em seu carro do ano, quando, de repente, foi abordado, no sinal de trânsito, por um menino, de não mais de doze anos de idade, que anunciou tratar-se de um assalto. José Carlos na tentativa de defender seu patrimônio, conseguido com muito suor e privação, saiu queimando pneu. A única coisa que José não esperava era o fato de o menino atirar nele durante a fuga, porém o menino, que não tinha nada a perder, atirou e acertou o pescoço de José, que morreu antes mesmo de ser socorrido.

José Carlos, Zeca ou Zequinha, tanto faz, do papel veio e ao papel retornou. Um dia teve sua chegada ao mundo registrada em um pedaço de papel, sua certidão de nascimento, e hoje sua curta existência não passa de mais um papel, seu atestado de óbito. Durante sua vida ele lutou para ter poder e acesso a todos os tipos de papel, porém não conseguiu cumprir seu papel mais simples: ser feliz.

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