A Garganta da Serpente
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O pai

(Roberto Domanico Filho)

Naquele domingo, debaixo de um sol escaldante, Tonzinho preparava-se para "istecar" a bolinha de gude do irmão, estacionada convidativamente à beira do boxe. Se conseguisse, com sua bolinha, atingir a do irmão, o jogo estava ganho e ele ficaria com aquela bolinha colorida, a "americana", que era uma matadeira de primeira linha.

Tonzinho concentrou-se, mirou cuidadosamente, não ligando para as figas contra que o irmão fazia, e com sua matadeira na ponta do polegar, pensou: "É agora!."

"Tonzinhooooo! Vá buscar seu pai para almoçar!!"

O grito da mãe ecoou tão súbito, e tão estridente, que Tonzinho hesitou por uma fração de segundo e sua bolinha passou a dois palmos do alvo.

-Êta grossura! Rá! Rá! Rá! Você errou, seu panaca! -gritou triunfante o irmão, ao mesmo tempo que pegava sua bolinha e saía a correr, para não ser vítima do costumeiro mau humor de Tonzinho, que não era bom perdedor.

Tonzinho levantou-se, resmungou qualquer coisa, colocou sua bolinha no bolso, e seguiu em direção ao portão, não sem antes tentar chutar o galo que, inadvertidamente, havia se colocado em seu caminho. Sem entender o motivo de tanta malcriação, o assustado galináceo saiu cacarejando em pânico, pensando que o dia da panela havia chegado.

Tonzinho destravou o trinco pega-ladrão, abriu o pesado portão de madeira, saiu e fechou com um tranco, ouvindo o familiar "tlink" da trava.

Já na rua, logo arrependeu-se de não ter calçado suas alpargatas, pois o chão estava fervendo, de fritar ovo.

Tonzinho foi caminhando, trocando os pés rapidamente, naquela soalheira, vendo o sol refletir-se nos minúsculos pedaços de vidro espalhados pela calçada.

Todo domingo era a mesma coisa. Não havia nenhuma vantagem em ser o irmão mais velho. "Tonzinho, vá comprar alface! Tonzinho, vá buscar seu irmão na escola! Tonzinho, engraxe os sapatos! Tonzinho isso, Tonzinho aquilo! E o irmão sempre se saía bem, em qualquer arte que fazia, pois Tonzinho era o que sempre levava os cascudos e as chineladas.


No domingo, a responsabilidade de Tonzinho era a de chamar o pai para o almoço...no bar.

Tonzinho detestava aquilo. O fato de seu pai ficar no bar até as tantas no domingo irritava sua mãe, e ela, por tabela, descontava nos meninos, e quantos domingos não foram estragados por aquela rotina irritante, seu pai chegando em casa embriagado e...

Não, não, definitivamente Tonzinho não admirava o pai. Não gostava de vê-lo contando vantagens na frente de estranhos, de gente que mal o conhecia, e para quem pagava repetidas rodadas de bebida, sempre contando a mesma coisa, o mesmo fato, a mesma piada, vezes e vezes, para uma plateia que estava era mais interessada em beber às suas custas.

Tonzinho resolveu pegar um atalho, por uma viela que saía perto da esquina onde ficava o bar. Normalmente ele não passava por ali, pois aquele era o território da turma da rua Norte, porém, no domingo havia uma espécie de trégua, um acordo de cavalheiros entre as turmas, e as brigas cessavam até a segunda-feira.

Apressou o passo e logo saiu da viela, já divisando o bar, com seus cartazes coloridos de anúncios de refrigerantes, e a costumeira freguesia dos domingos.

Sentiu um nó no estômago. Pensou por um momento em virar as costas e voltar para casa. Todo domingo ele pensava a mesma coisa. Mas voltar, sem o pai, significava, no mínimo, receber uma descompostura da mãe, e no máximo, uma surra de chinelo. Sempre preso entre a cruz e a caldeirinha, o menino optava por preservar a paz dominical. "Vamos lá!"-pensou.

Tonzinho entrou no bar, passando rente a dois cachorros vira-latas, frequentadores habituais do lugar, que, deitados logo à entrada do estabelecimento, desfrutavam do frescor do chão, em contraste com o calor infernal de fora. Estes saudaram Tonzinho com um breve levantar das cabeças, já que o conheciam de outros domingos.

Aproximou-se do pai, logo percebendo que ele estava contando, pela milésima-ducentésima vez, como ele fez aquele gol contra os Granadeiros da Ponte Nova, que deu o Campeonato Estadual de Várzea ao Vila Mantraco F.C..









.....-Quarenta e quatro do segundo tempo! Eu matei a bola no peito, e deixei que ela escorregasse para meu pé direito....Aquele beque do Granadeiros, o Guarda-Roupa, já vinha pra cima de mim soltando fumaça quando eu simplesmente coloquei a bola, eu não chutei, coloquei a bola no ângulo, bem no ninho da coruja...O goleiro ficou de boca aberta olhando a bichinha passar e bater no véu de noiva....chuáááááá! A torcida berrou que nem louca....Nem deram a saída e o jogo terminou. Campeões! Nós ganhamos dos melhores! O Granadeiros levou essa derrota para casa, sim senhor! Dois a um, sem perdão! E eles precisavam de um empate para levar o campeonato! Até hoje estão amargando essa!

Tonzinho aproximou-se do pai, notando que ele já estava bem tocado. Era a hora de insistir, implorar.

-Pai, mãe está chamando para o almoço!-pediu.

O pai olhou para o menino com carinho, e o apontou para os amigos.

-Esse é meu filho, o mais velho. Menino estudioso tá aí. Só que não joga bem futebol como o pai...Filho, você quer um doce, um chocolate, um sorvete?-disse o pai, apontando para a vitrine do caixa onde geralmente se colocam os chicletes, chocolates, doces...
-Pai, vem comigo, a mãe tá chamando para o almoço!-insistiu Tonzinho, embora um sorvete não iria mal, naquele calor.
-Filho, espere um pouco! Não vê que estou conversando? Seja educado e espere seu pai acabar a conversa, não vai demorar.

Esse "não vai demorar" significava mais vinte ou trinta minutos de conversa fiada. Se chegassem muito atrasados para o almoço, na certa haveria briga em casa. E o que Tonzinho menos queria era uma briga, justo no domingo!

Tonzinho ia insistir mais uma vez quando aquele homem entrou. Era um sujeito alourado, alto, forte, tipo peito-de-pombo, de camiseta e calção de atleta, levando uma sacola com garrafas de refrigerante e cerveja. Na tarefa de convencer o pai a ir para casa, Tonzinho colocou-se, sem querer, no caminho do homem. Este, em vez de parar e pedir passagem para o menino, simplesmente o empurrou com o corpo, jogando-o de lado, quase fazendo com que Tonzinho fosse cair de bruços na mesa de pembolim encostada à parede.

O pai de Tonzinho, a princípio atônito com a brutalidade da cena, gritou para o homem:

-Ei, você! Não viu o menino, seu mal-educado?! Não se pede mais licença?


O homem virou-se e encarou o pai de Tonzinho. Vendo sua figura franzina, em comparação com sua própria musculatura, sorriu. Aquele bêbado não seria páreo para ele.

-Tá tomando as dores do garoto, pau d'água?-perguntou, com um sorriso cínico.
-O garoto é meu filho, e você é um covarde, abusando da fraqueza de uma criança.-disse o pai de Tonzinho, ao mesmo tempo em que se colocava em frente ao homem, sob os olhares de expectativa dos frequentadores do bar.
-Tá bom. Se você quer uma briga, já arrumou uma. Você quer que eu use um dedo? Ou será que um assopro é o suficiente?

O pai de Tonzinho estava furioso e, ao mesmo tempo, com medo. Sabia que não tinha a mínima condição de topar uma briga com aquele brutamontes. Além de já estar amolecido pela bebida, não tinha as mínimas condições físicas para enfrentar o valentão. Mas não podia dar parte de medroso na frente do filho e dos amigos. Se afinasse, nunca mais recuperaria o respeito do menino. Não podia mais recuar.

-Tá bem, valentão. Vamos lá fora resolver essa parada!-disse, com uma convicção que na verdade não tinha.

O brutamontes colocou a sacola no chão, sorrindo.

-Você vai apanhar é aqui mesmo, pau d'água! Na frente de todo o mundo!

E calmamente, bem devagar, começou a caminhar na direção do pai de Tonzinho, confiante em sua força, sabendo que facilmente espancaria seu antagonista. Seria uma surra em regra, um divertimento.

-Alto lá, cabra!

A voz alta, grave e impositiva fez o brutamontes parar. Todos olharam para o homem que estava numa mesinha junto à parede, logo depois do pembolim.

Tonzinho logo reconheceu aquele homem moreno, de cabelos e bigodes brancos. Todos os domingos ele o via no bar. Sentava-se sempre àquela mesa e ali ficava, bebericando uma cerveja. Nunca o menino o havia visto falar com alguém. Sempre ali, naquela mesa, calado.

Só que todos ali o temiam. Falavam coisas dele. Diziam que era um ex-jagunço, um pistoleiro que havia trabalhado para fazendeiros no norte do país, um homem com muitas mortes nas costas. Outros afirmavam que era um policial aposentado, da antiga Polícia Especial, do Getúlio. Fosse quem fosse, era uma figura que inspirava temor nos frequentadores do bar.



A voz grave continuou:

-Parece que o cabra é um homem valente, principalmente com crianças e gente mais fraca. Gostei de ver....
-A briga...não é com você...-disse o grandalhão, com voz hesitante, bem diferente do tom cínico que havia usado até então. Tonzinho notou que a cor do homem mudara, do vermelho corado passou para um tom ligeiramente pálido.
-Mas e se eu comprar? O distinto está vendendo?-perguntou o homem da mesa, esboçando um leve sorriso.
-Olhe.....
-Olhe nada, ô cabra! Eu hoje estou a fim de uma boa briga. Só que eu não gosto de briga de soco e pontapé, eu prefiro outros instrumentos...O distinto topa?

A esta altura, toda a valentia do brutamontes havia desaparecido. Seus olhos fitavam o homem da mesa como que hipnotizados. Sabia que estava entrando numa situação que poderia ter consequencias extremamente funestas. O bar estava tão silencioso que se podia ouvir um anjo pousando numa nuvem.

O homem da mesa continuou:

-Sabe, seu cabra, é muito fácil ser valente com quem não pode se defender. Por que não tenta a sorte comigo? Vou te dar uma vantagem. Eu fico aqui sentado nesta mesa e você vem pra cima de mim. Que tal? Quem sabe você me dá uma surra?

O brutamontes começou a recuar. Apanhou a sacola no chão e, sem virar as costas, foi se afastando em direção à porta do bar.

-Espere, ô distinto! Já vai embora? Agora que a conversa estava ficando boa?-pilheriou o homem da mesa, com um cruel sorriso de mofa.-Tá faltando uma coisa, o distinto está esquecendo?
-O...qu-que é? -gaguejou o grandalhão.
-Falta pedir desculpas ao amigo ali e ao menino. O distinto não tem modos, sua mãe não lhe ensinou?-perguntou o homem, desta vez com uma ameaça velada no olhar.

O grandalhão entendeu imediatamente a suprema humilhação que estava para sofrer, e compreendeu também que esta era a condição para que ele saísse dali ainda caminhando. Olhou para Tonzinho e seu pai e balbuciou:


-Peço desculpas....
-O amigo aí e o menino, vocês aceitam as desculpas do cabra?
Tonzinho e o pai imediatamente responderam que sim. Queriam acabar logo com aquilo antes que uma tragédia pudesse acontecer.

-Então tá bom, cabra! Vá andando! Hoje é o seu dia de sorte! Mas se eu um dia ouvir que você encostou um dedo em meus amigos, eu vou lhe procurar nem que seja no inferno!

O grandalhão saiu o mais rápido que pode do bar, desaparecendo da vista de todos.

O homem levantou-se, colocou algum dinheiro na mesa para pagar a cerveja e veio na direção de Tonzinho e do pai.

Indiferente ao agradecimento que o pai de Tonzinho lhe dirigiu, o homem fitou Tonzinho nos olhos e falou:

-Menino, o que você viu aqui não é valentia. Valentia é a de seu pai, que enfrentou aquele sujeitinho para defender você, mesmo sabendo que poderia perder a briga. Respeite sempre seu pai, que ele é um homem de brio!

E o homem saiu também para a rua. E o bar voltou à vida, com todos comentando o ocorrido.

Tonzinho puxou o pai pelo braço e o levou em direção à porta. Os outros que pagassem a bebida desta vez. O pai ia para casa.

Em silêncio, os dois seguiam para casa. Tonzinho segurando na mão do pai, orgulhoso, os olhos brilhando.

-Pai, como foi mesmo aquele gol que você marcou contra o Granadeiros?
-Eu estava na área e a bola veio direto no meu peito. Eu deixei ela escorregar
e.....

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