Foi numa noite de verão, de um janeiro dos anos sessenta, hoje tão
distantes.
Fazia calor e eu então decidi sair à rua para tomar um pouco
de ar fresco e, ao passar o portão de casa, ouvi, ao longe, a voz inconfundível
do Beraldo, que vinha acompanhado de mais duas pessoas, que logo reconheci como
sendo o Nasal e o Banana.
-Bertazzo! Preciso falar com você!-gritou o Beraldo à distância,
com o vozeirão peculiar.
Meu amigo Beraldo era o que se podia chamar de "guarda-roupa aberto".
Com um metro e oitenta de altura e físico de boxeador, era uma parada
indigesta em qualquer briga, embora não fosse essencialmente uma pessoa
violenta, pois nunca o vi fazer mal a quem quer que fosse, deliberadamente.
O que o enraivecia, porém, era que alguém duvidasse de que ele
pudesse fazer alguma coisa. Isso o punha invariavelmente furioso.
Quando chegaram mais perto, percebi que o Nasal estava sorrindo aquele sorriso
cínico de quem havia aprontado uma boa. Nasal recebeu esse apelido graças
ao enorme nariz que ostentava como uma enorme proa de navio, origem de tantos
apelidos, tais como "guarda-chuva de cigarro", "limpa-trilhos",
etc... Porém Nasal foi o que pegou, e ficou.
E havia o Banana. O Banana era...o Banana! Recebeu essa alcunha graças
às sardas que ele (e toda a família) ostentava no rosto, o que
dava à sua pessoa a aparência de uma banana nanica. O Banana não
tinha opinião nenhuma, nem vontade própria. Era o tal maria-vai-com-as-outras.
Topava qualquer coisa que aparecesse, desde que outro tivesse a ideia.
Se alguém estava sozinho e precisava de companhia para ir ao cinema,
era só chamar o Banana. Se alguém queria ir ao centro da cidade
comprar alguma coisa e precisava de ajuda para carregar, o Banana estava lá.
Sem crítica, sem opinião, o Banana era uma sombra.
Beraldo me abraçou, dizendo:
-Bertazzo, preciso de sua ajuda nesta parada!
-Qual é o problema? Não vá me dizer que arrumou outra encrenca
com a turma da rua Nove?
-Não, não é nada disso! É que o nosso amigo Nasal
resolveu me desafiar, não é, Nasal?
Nasal continuava com a expressão do gato que comeu o passarinho. Sendo
entre nós o único com emprego fixo, era como se fosse um milionário
entre pobretões. Podia ir ao cinema quando quisesse, comprava suas roupas
e tinha até namoradas. Mas sua mania era a de apostar. Apostava em tudo,
no dominó, no bilhar, no bicho, em qualquer coisa. Mas sua predileção
era desafiar o pobre do Beraldo que, por orgulho, não fugia da raia,
mesmo levando a pior. Certa ocasião, Nasal duvidou que Beraldo pudesse
desafiar o valentão do bairro (um sujeito que era mestre de capoeira
e faixa-preta em jiu-jitsu, entre outras coisas). Beraldo cobrou a aposta depois
de passar uma semana no hospital e mais um mês com os braços engessados.
-É, temos uma aposta de pé, Bertazzo! E você está
nessa!-.-disse o Nasal.
-E posso saber o que é desta vez? -cometi a besteira de perguntar.
-Nós vamos entrar na Mansão dos Calabra e pintar um "X"
bem grande na porta da frente! Eu e você!-disse alegre o Beraldo.
-O que? Na Mansão dos Calabra? Você ficou maluco?-respondi, ao
mesmo tempo sentindo um arrepio na espinha.
Toda cidade, ou vila, ou bairro que se preze, tem sua casa mal-assombrada.
Nosso bairro não fugia à regra. Nós tínhamos a Mansão
dos Calabra. Era uma casa grande, antiga, tipo mesmo daquelas que aparecem em
filmes de terror, com muitas janelas, uma torre e todo o jeitão de dar
abrigo a uma família inteira de fantasmas. O nome "Calabra"
era uma corruptela do verdadeiro nome da família que ali habitou no passado,
nome esse que se perdeu no tempo. Mas a fama de mal-assombrada ficou, e era
tão forte que ninguém, mas ninguém mesmo ousava entrar
naquela mansão abandonada. Nem a molecada do bairro, que nada respeitava,
tinha coragem de invadir o enorme quintal da mansão para roubar as frutas
que as árvores generosamente ofereciam. Praticamente apodreciam no pé,
na falta de alguém para colhê-las. E os mais velhos evitavam passar
em frente à casa, atravessando para o outro lado da rua, fazendo o sinal-da-cruz.
-Está afinando, Bertazzo?-perguntou o Beraldo com ar de dúvida.
-Tá com medinho, é?
-Espere aí, Beraldo...-retruquei- Essa aposta não é minha!
Você que se entenda com o Nasal!
-Bertazzo, o Beraldo disse que você toparia a parada. E está incluído
na aposta.-observou Nasal, calmamente.-Eu ofereci duas entradas para o cinema,
sessão dupla, e ainda apresento vocês para duas garotas. Que tal?
-Sei, e o que eu e o Beraldo temos que fazer?-perguntei, esperando o pior.
-Fácil, fácil...-continuou Nasal.- Para ganhar a aposta vocês
terão que pintar uma cruz na porta da frente da Mansão dos Calabra.
O arrepio subiu de novo pela espinha. Tive vontade de estrangular o Beraldo
por ter aceito uma aposta dessas. Olhei para ele com um olhar assassino que
o levou a dizer:
-Calma, Bertazzo! A gente tira essa de letra! Fantasmas não existem,
você sabe, com exceção do Banana aqui, que é um de
carne e osso, não é, Banana? Ha! Ha! Ha! Vamos lá, Bertazzo!
Além do mais, você me deve aquela vez que te livrei de tomar uma
surra do pessoal da rua Nove, tá lembrado?
-Isso, jogue na cara!-retruquei. -Escute, Nasal, quando é que temos que
realizar essa nobre façanha?
-Hoje mesmo. Viemos te buscar para isso.
-Mas tem que ser à noite?-indaguei, esperançoso em ouvir uma negativa.
-Esqueci de mencionar este detalhe, Bertazzo. -disse o Beraldo em tom de desculpa.-Mas
o que tem? É só um detalhe....
-Eu devia quebrar o seu pescoço...-fiz um movimento ameaçador
em direção ao Beraldo. - Mas
já que estamos nessa, vamos embora...-eu disse em tom de bravata, mas
já sentindo o medo corroendo as entranhas.
Saímos dali e seguimos para a casa do Banana, que forneceria as tintas
para a grande façanha. Como prêmio pela colaboração
o Banana ganharia uma entrada para a matiné de domingo e proteção
por um mês contra a turma da rua Nove, que gostava de fazê-lo de
saco de pancadas de vez em quando, como treinamento.
Silenciosamente, para não acordar o pai que era uma fera, o Banana entrou
em casa e logo saiu com duas latas de tinta e dois pincéis e daí
seguimos em direção à Mansão dos Calabra, cuja torre
sinistra já podíamos avistar de longe, espectralmente iluminada
pelas lâmpadas dos postes da rua.
Subimos a ladeira que levava à mansão em silêncio, só
ouvindo nossos próprios passos e os grilos, que na noite de calor anunciavam
uma possível chuva para o dia seguinte, também prenunciada pelo
halo que circundava a lua cheia. E à medida que subíamos, o medo
ia criando um volume no estômago, uma pressão na espinha, uma secura
na boca. Só que ninguém demonstrava, nada de dar parte de frouxo!
Comecei a lembrar das inúmeras histórias de assombração
que minha avó materna me contava, de mulas-sem-cabeça, lobisomens,
visagens e outras coisas de assombrar. Mas agora era tarde. Tinha que seguir
em frente, ou não poderia nunca mais encarar meus amigos.
Aos poucos, o vulto enorme da mansão dos Calabra começou a se
tornar visível, com a silhueta sinistra recortada pelo luar.
Chegamos finalmente em frente à mansão, ficando ali parados por
alguns minutos, avaliando o lugar e a situação estúpida
em que havíamos nos metido.
Beraldo foi o primeiro a quebrar o silêncio.
-Muito bem, aqui estamos! Banana, passe a tinta!
O Banana imediatamente obedeceu, entregando um galão de tinta branca
e pincel para o Beraldo e o mesmo para mim, de maneira solene e silenciosa,
como alguém se despedindo de um condenado à morte.
-Nasal, você e o Banana vão ficar aqui nos esperando, certo?-perguntei.
-Esse é o trato. Vamos ficar aqui.-respondeu o Nasal, com ar sério.
O sorriso cínico que sempre ostentava havia desaparecido.
Preparamo-nos para a façanha fazendo o sinal-da-cruz e empurramos o
enferrujado portão de ferro que, pelo esforço que custou (bloqueado
que estava pelo mato que havia crescido do outro lado) mostrava não ter
sido aberto por décadas.
Adentramos o quintal, olhando fixamente para a construção à
nossa frente, que, palidamente iluminada pelo luar e pelas luzes da rua, parecia
ainda mais fantasmagórica.
A casa, na verdade, fora construída quase no centro do terreno, distando
uns quinze metros do portão. Assim, para ganhar a aposta, tínhamos
que andar até a porta fatídica, para lá pintar o tal "X"
em tinta branca e retornar ao portão.
Dei uma boa olhada para a casa e gelei por dentro, pois as duas grandes janelas
frontais e a porta formavam um conjunto de olhos e boca lembrando uma face malévola
a nos olhar como que dizendo: "Cheguem mais perto para que eu possa devorá-los".
Písavamos o chão fofo que outrora fora o jardim e que agora era
uma pequena selva de ervas-daninhas. Por sorte, as árvores da casa (às
quais me referi no começo desta narrativa) ficavam no fundo, portanto,
caminhávamos sob o luar.
Estavámos já nos aproximando da porta. Eu podia ouvir minha respiração
e a do Beraldo, que caminhava à minha frente, de maneira decidida, embora
eu pudesse até sentir a aura de medo que nos envolvia.
-Taí, Bertazzo...-disse o Beraldo num sussurro - mais um pouco e já
papamos esta....
-Splaf!
Eu ouvi o som e não quis acreditar no que...
-Bertazzo, que história é essa de bater na minha cara? Tá
querendo levar um...
-Splaf! Splaf!
Não foi impressão. Eu vi o rosto de Beraldo mover-se como se
tivesse levado violenta bofetada. Logo em seguida foi a minha vez, bem na cara,
quase me fazendo perder o equilíbrio. Eu senti a enorme mão, de
alguém bem forte, abrir-se em meu rosto como um ovo estrelado na frigideira.
E não vi coisa nenhuma!
-Bertazzo, o que você está fazendo?
-Não sou eu, Beraldo! Alguém está nos....
-Splaf! Splaf!
Um para cada um de nós, novamente.
Não esperamos mais um segundo e saímos em desabalada carreira,
largando galões de tinta e pincéis para traz. Desprezamos o portão
de ferro e pulamos o muro de dois metros da mansão como se fosse uma
mísera cerquinha, e despencamos numa corrida louca pela ladeira, mais
velozes que o vento.
Só me recordo de ter ultrapassado Banana e Nasal na descida, e o que
ficou gravado na minha memória nessa corrida foi a expressão de
terror em seus rostos, expressão de quem estava fugindo do inferno.
Em pouco tempo cheguei à minha casa e entrei, sem me despedir de ninguém.
Beraldo, Nasal e Banana seguiram, cada um para sua respectiva residência.
Encontramo-nos no dia seguinte. Nenhum de nós conseguira dormir e o
medo continuava estampado em nossas faces. Levávamos na bochecha a vermelhidão
no lado onde tínhamos levado as bofetadas.
Não tínhamos explicação plausível, no mundo
dos vivos, para aquela ocorrência. Não vimos ninguém, ninguém
nos seguiu, e não obstante, apanhamos na cara como quatro idiotas. Quatro,
eu disse, pois o Nasal e o Banana também levaram as deles.
Nasal quis pagar a aposta mas não aceitamos. Perdemos, e apanhamos.
Ninguém ganhou.
Juramos não falar daquilo a ninguém pois ninguém acreditaria
em nós e passaríamos a ter fama de medrosos no bairro todo.
Mas o verdadeiro terror, esse veio quando voltei para casa e deparei com minha
mãe, furiosa, segurando a calça que eu havia usado naquela malfadada
noite, gritando:
-Seu malandro! Eu lavo e passo suas roupas e você volta para casa com
a calça desse jeito!
Nos fundilhos de minha calça estava um grande, branco, bem desenhado
"X" .
Para minha vergonha, desmaiei ali mesmo.