A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Uma história de assombrar: a aposta

(Roberto Domanico Filho)

Foi numa noite de verão, de um janeiro dos anos sessenta, hoje tão distantes.

Fazia calor e eu então decidi sair à rua para tomar um pouco de ar fresco e, ao passar o portão de casa, ouvi, ao longe, a voz inconfundível do Beraldo, que vinha acompanhado de mais duas pessoas, que logo reconheci como sendo o Nasal e o Banana.

-Bertazzo! Preciso falar com você!-gritou o Beraldo à distância, com o vozeirão peculiar.

Meu amigo Beraldo era o que se podia chamar de "guarda-roupa aberto". Com um metro e oitenta de altura e físico de boxeador, era uma parada indigesta em qualquer briga, embora não fosse essencialmente uma pessoa violenta, pois nunca o vi fazer mal a quem quer que fosse, deliberadamente. O que o enraivecia, porém, era que alguém duvidasse de que ele pudesse fazer alguma coisa. Isso o punha invariavelmente furioso.

Quando chegaram mais perto, percebi que o Nasal estava sorrindo aquele sorriso cínico de quem havia aprontado uma boa. Nasal recebeu esse apelido graças ao enorme nariz que ostentava como uma enorme proa de navio, origem de tantos apelidos, tais como "guarda-chuva de cigarro", "limpa-trilhos", etc... Porém Nasal foi o que pegou, e ficou.

E havia o Banana. O Banana era...o Banana! Recebeu essa alcunha graças às sardas que ele (e toda a família) ostentava no rosto, o que dava à sua pessoa a aparência de uma banana nanica. O Banana não tinha opinião nenhuma, nem vontade própria. Era o tal maria-vai-com-as-outras. Topava qualquer coisa que aparecesse, desde que outro tivesse a ideia. Se alguém estava sozinho e precisava de companhia para ir ao cinema, era só chamar o Banana. Se alguém queria ir ao centro da cidade comprar alguma coisa e precisava de ajuda para carregar, o Banana estava lá. Sem crítica, sem opinião, o Banana era uma sombra.

Beraldo me abraçou, dizendo:

-Bertazzo, preciso de sua ajuda nesta parada!
-Qual é o problema? Não vá me dizer que arrumou outra encrenca com a turma da rua Nove?
-Não, não é nada disso! É que o nosso amigo Nasal resolveu me desafiar, não é, Nasal?

Nasal continuava com a expressão do gato que comeu o passarinho. Sendo entre nós o único com emprego fixo, era como se fosse um milionário entre pobretões. Podia ir ao cinema quando quisesse, comprava suas roupas e tinha até namoradas. Mas sua mania era a de apostar. Apostava em tudo, no dominó, no bilhar, no bicho, em qualquer coisa. Mas sua predileção era desafiar o pobre do Beraldo que, por orgulho, não fugia da raia, mesmo levando a pior. Certa ocasião, Nasal duvidou que Beraldo pudesse desafiar o valentão do bairro (um sujeito que era mestre de capoeira e faixa-preta em jiu-jitsu, entre outras coisas). Beraldo cobrou a aposta depois de passar uma semana no hospital e mais um mês com os braços engessados.

-É, temos uma aposta de pé, Bertazzo! E você está nessa!-.-disse o Nasal.
-E posso saber o que é desta vez? -cometi a besteira de perguntar.
-Nós vamos entrar na Mansão dos Calabra e pintar um "X" bem grande na porta da frente! Eu e você!-disse alegre o Beraldo.
-O que? Na Mansão dos Calabra? Você ficou maluco?-respondi, ao mesmo tempo sentindo um arrepio na espinha.

Toda cidade, ou vila, ou bairro que se preze, tem sua casa mal-assombrada. Nosso bairro não fugia à regra. Nós tínhamos a Mansão dos Calabra. Era uma casa grande, antiga, tipo mesmo daquelas que aparecem em filmes de terror, com muitas janelas, uma torre e todo o jeitão de dar abrigo a uma família inteira de fantasmas. O nome "Calabra" era uma corruptela do verdadeiro nome da família que ali habitou no passado, nome esse que se perdeu no tempo. Mas a fama de mal-assombrada ficou, e era tão forte que ninguém, mas ninguém mesmo ousava entrar naquela mansão abandonada. Nem a molecada do bairro, que nada respeitava, tinha coragem de invadir o enorme quintal da mansão para roubar as frutas que as árvores generosamente ofereciam. Praticamente apodreciam no pé, na falta de alguém para colhê-las. E os mais velhos evitavam passar em frente à casa, atravessando para o outro lado da rua, fazendo o sinal-da-cruz.

-Está afinando, Bertazzo?-perguntou o Beraldo com ar de dúvida. -Tá com medinho, é?
-Espere aí, Beraldo...-retruquei- Essa aposta não é minha! Você que se entenda com o Nasal!
-Bertazzo, o Beraldo disse que você toparia a parada. E está incluído na aposta.-observou Nasal, calmamente.-Eu ofereci duas entradas para o cinema, sessão dupla, e ainda apresento vocês para duas garotas. Que tal?
-Sei, e o que eu e o Beraldo temos que fazer?-perguntei, esperando o pior.
-Fácil, fácil...-continuou Nasal.- Para ganhar a aposta vocês terão que pintar uma cruz na porta da frente da Mansão dos Calabra.




O arrepio subiu de novo pela espinha. Tive vontade de estrangular o Beraldo por ter aceito uma aposta dessas. Olhei para ele com um olhar assassino que o levou a dizer:

-Calma, Bertazzo! A gente tira essa de letra! Fantasmas não existem, você sabe, com exceção do Banana aqui, que é um de carne e osso, não é, Banana? Ha! Ha! Ha! Vamos lá, Bertazzo! Além do mais, você me deve aquela vez que te livrei de tomar uma surra do pessoal da rua Nove, tá lembrado?
-Isso, jogue na cara!-retruquei. -Escute, Nasal, quando é que temos que realizar essa nobre façanha?
-Hoje mesmo. Viemos te buscar para isso.
-Mas tem que ser à noite?-indaguei, esperançoso em ouvir uma negativa.
-Esqueci de mencionar este detalhe, Bertazzo. -disse o Beraldo em tom de desculpa.-Mas o que tem? É só um detalhe....
-Eu devia quebrar o seu pescoço...-fiz um movimento ameaçador em direção ao Beraldo. - Mas
já que estamos nessa, vamos embora...-eu disse em tom de bravata, mas já sentindo o medo corroendo as entranhas.

Saímos dali e seguimos para a casa do Banana, que forneceria as tintas para a grande façanha. Como prêmio pela colaboração o Banana ganharia uma entrada para a matiné de domingo e proteção por um mês contra a turma da rua Nove, que gostava de fazê-lo de saco de pancadas de vez em quando, como treinamento.

Silenciosamente, para não acordar o pai que era uma fera, o Banana entrou em casa e logo saiu com duas latas de tinta e dois pincéis e daí seguimos em direção à Mansão dos Calabra, cuja torre sinistra já podíamos avistar de longe, espectralmente iluminada pelas lâmpadas dos postes da rua.

Subimos a ladeira que levava à mansão em silêncio, só ouvindo nossos próprios passos e os grilos, que na noite de calor anunciavam uma possível chuva para o dia seguinte, também prenunciada pelo halo que circundava a lua cheia. E à medida que subíamos, o medo ia criando um volume no estômago, uma pressão na espinha, uma secura na boca. Só que ninguém demonstrava, nada de dar parte de frouxo!

Comecei a lembrar das inúmeras histórias de assombração que minha avó materna me contava, de mulas-sem-cabeça, lobisomens, visagens e outras coisas de assombrar. Mas agora era tarde. Tinha que seguir em frente, ou não poderia nunca mais encarar meus amigos.

Aos poucos, o vulto enorme da mansão dos Calabra começou a se tornar visível, com a silhueta sinistra recortada pelo luar.



Chegamos finalmente em frente à mansão, ficando ali parados por alguns minutos, avaliando o lugar e a situação estúpida em que havíamos nos metido.

Beraldo foi o primeiro a quebrar o silêncio.

-Muito bem, aqui estamos! Banana, passe a tinta!

O Banana imediatamente obedeceu, entregando um galão de tinta branca e pincel para o Beraldo e o mesmo para mim, de maneira solene e silenciosa, como alguém se despedindo de um condenado à morte.

-Nasal, você e o Banana vão ficar aqui nos esperando, certo?-perguntei.
-Esse é o trato. Vamos ficar aqui.-respondeu o Nasal, com ar sério. O sorriso cínico que sempre ostentava havia desaparecido.

Preparamo-nos para a façanha fazendo o sinal-da-cruz e empurramos o enferrujado portão de ferro que, pelo esforço que custou (bloqueado que estava pelo mato que havia crescido do outro lado) mostrava não ter sido aberto por décadas.

Adentramos o quintal, olhando fixamente para a construção à nossa frente, que, palidamente iluminada pelo luar e pelas luzes da rua, parecia ainda mais fantasmagórica.

A casa, na verdade, fora construída quase no centro do terreno, distando uns quinze metros do portão. Assim, para ganhar a aposta, tínhamos que andar até a porta fatídica, para lá pintar o tal "X" em tinta branca e retornar ao portão.

Dei uma boa olhada para a casa e gelei por dentro, pois as duas grandes janelas frontais e a porta formavam um conjunto de olhos e boca lembrando uma face malévola a nos olhar como que dizendo: "Cheguem mais perto para que eu possa devorá-los".

Písavamos o chão fofo que outrora fora o jardim e que agora era uma pequena selva de ervas-daninhas. Por sorte, as árvores da casa (às quais me referi no começo desta narrativa) ficavam no fundo, portanto, caminhávamos sob o luar.

Estavámos já nos aproximando da porta. Eu podia ouvir minha respiração e a do Beraldo, que caminhava à minha frente, de maneira decidida, embora eu pudesse até sentir a aura de medo que nos envolvia.

-Taí, Bertazzo...-disse o Beraldo num sussurro - mais um pouco e já papamos esta....

-Splaf!

Eu ouvi o som e não quis acreditar no que...

-Bertazzo, que história é essa de bater na minha cara? Tá querendo levar um...

-Splaf! Splaf!

Não foi impressão. Eu vi o rosto de Beraldo mover-se como se tivesse levado violenta bofetada. Logo em seguida foi a minha vez, bem na cara, quase me fazendo perder o equilíbrio. Eu senti a enorme mão, de alguém bem forte, abrir-se em meu rosto como um ovo estrelado na frigideira. E não vi coisa nenhuma!

-Bertazzo, o que você está fazendo?
-Não sou eu, Beraldo! Alguém está nos....

-Splaf! Splaf!

Um para cada um de nós, novamente.

Não esperamos mais um segundo e saímos em desabalada carreira, largando galões de tinta e pincéis para traz. Desprezamos o portão de ferro e pulamos o muro de dois metros da mansão como se fosse uma mísera cerquinha, e despencamos numa corrida louca pela ladeira, mais velozes que o vento.

Só me recordo de ter ultrapassado Banana e Nasal na descida, e o que ficou gravado na minha memória nessa corrida foi a expressão de terror em seus rostos, expressão de quem estava fugindo do inferno.

Em pouco tempo cheguei à minha casa e entrei, sem me despedir de ninguém. Beraldo, Nasal e Banana seguiram, cada um para sua respectiva residência.

Encontramo-nos no dia seguinte. Nenhum de nós conseguira dormir e o medo continuava estampado em nossas faces. Levávamos na bochecha a vermelhidão no lado onde tínhamos levado as bofetadas.

Não tínhamos explicação plausível, no mundo dos vivos, para aquela ocorrência. Não vimos ninguém, ninguém nos seguiu, e não obstante, apanhamos na cara como quatro idiotas. Quatro, eu disse, pois o Nasal e o Banana também levaram as deles.

Nasal quis pagar a aposta mas não aceitamos. Perdemos, e apanhamos. Ninguém ganhou.

Juramos não falar daquilo a ninguém pois ninguém acreditaria em nós e passaríamos a ter fama de medrosos no bairro todo.


Mas o verdadeiro terror, esse veio quando voltei para casa e deparei com minha mãe, furiosa, segurando a calça que eu havia usado naquela malfadada noite, gritando:

-Seu malandro! Eu lavo e passo suas roupas e você volta para casa com a calça desse jeito!

Nos fundilhos de minha calça estava um grande, branco, bem desenhado "X" .

Para minha vergonha, desmaiei ali mesmo.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br