A Garganta da Serpente
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A vida é doce depois da meia noite

(Raphael Coutinho)

"É claro que amanhã fará um dia bonito
- Mas vocês terão que madrugar
"
Virginia Woolf

Há um comichão que me arrefece até os ossos: a vida na madrugada. Decerto que a noite é suave, não apenas o S. Fitzgerald, mas também compartilho de tal usufruto. A vida é doce depois da meia noite. Experimente esgueirar-se na janela do teu quarto: a lua que me observa e furta meu sono exige admiração em dobro. Os ventos; ah, os ventos, estes traduzem a suavidade da noite; então, com o rosto exposto na janela ou mesmo estirado na cama, sinto o vento tépido que percorre toda a extensão do meu corpo, assim, sem pudor lambe meus cabelos, vento bom: meus pulmões ficam esotéricos.

A madrugada, deveras, nos diz um pouco do que somos. O silêncio que ecoa irrefletido em mim um vazio e o nada que se encontra com o infinito. O pôr de movimento de cabeça para cima e pronto: um céu multicolorido de nuanças azuis com um brilho rotineiro: um rincão indecifrável. As estrelas e seu colorido monótono perseguindo a existência como primeira manifestação a causa, porém, alheio. Fazer usucapião da noite é tornar-se poeta do submundo.

É imprescindível destacar também o lugar-comum; claro, todos sabem que a noite guarda seus mistérios. Realizo a busco do meu como no mito de Sísifo: uma querela a cada bocejo que se reafirma com a minha peleja de não dormir. Um novo round! Meu mistério mor reside aí na pedra de Proust, meu benfazejo de filósofo: aquele segundo que resiste, aquela noite que teima em cair, aquele mergulho ao impenetrável. A solidão bem sei que é engodo ao dia, tens com a noite o seu ápice.

O enlevo do não dito: como pertencer a si só na escuridão que o domina, e basta. Um "beber-se a si próprio sem sede".

As nuvens flanando a cobrir a lua de forma esporádica. Ainda estou lá, mesmo que hesitante - São Jorge na terra. Um trago de outra coisa far-me-á ainda melhor tanto para dormir quanto permanecer acordado: como placebo para notívago. - Faço a corruptela de Rimbaud: noite, sei saudar a beleza. A vigília do tempo é a descoberta filosófica da nossa importância: tentem!

Jung nos seus cantos litúrgicos dizia que em cada homem há um princípio feminino (anima). De pensar que a noite dormita em mim; anima meu aspecto inconsciente. Sou personagem ambivalente de Stevenson: procurando aquele que em mim se esconde. O sol de Apolo meu estandarte de razão: meu consciente. - Noite! Meu inconsciente sondado no talismã da lua. Busco-a como um jovem goetheano sedento de paixão: abismo-me no véu de maya desse amor... - A lua força cega, impetuosa, dama da noite: Joan Crawford imortal e as estrelas como bassáridas: - Evoé! Deleito-me nesta orgia cósmica: exploro a cosmogênese de mim mesmo.

O céu concomitante com a noite exerce este fascínio indescritível sobre mim. A noite, por sua vez, é meu refúgio: não clamo por ela, ela há de vir fatalmente até mim: a noite é uma deusa: salve Nuit! sauver Nyx! Salvare Lilith! Hieros gamos é minha ambição mais profunda e irreal, a mais viva! Um prazer cabalístico. Meu sacerdócio sufi. - Calo-me! Pacientar é sentir o burburinho da noite que vem de dentro.

Apenas Proust não me deixa sair incólume da vida. Sinto de tal modo à noite dentro de mim. Um tempo incessante, e um Brás Cubas que me recomenda carregar um relógio na algibeira para estar ciente da hora exata quando fenecer. Tomo um susto, estou atônito, e: meio dia! Meio dia, não! Durmo - após a faina de permanecer acordado - com a noite que me tragou dentro dela e me fez perder em sono. O corolário é que me impacienta: a consequente falta de vigor, o desânimo...

Que a noite nos reserva? Reside aí minha contenda ao ponto de não suportar a lucerna que me risca os olhos ao acordar deparando-me com o relógio que decreta: meio dia! Este sim é o meu pesadelo. Já dizia meu amigo Gabo: "deveríamos sonhar mais, e dormir menos".

Tudo isso porque a noite, do regozijo, também é aquela que me subtrai a manhã. De pensar que serei privado do sol cujo brilho enlouquece-me como os campos ensolarados da Provença francesa enlouqueceu a Van Gogh. Da mesma forma privado do 23 de setembro rasgando o dia: o levantar cedo, meu quarto irradiado de luz, o banho gelado e doce pela manhã, o pássaro cantando no quintal... Bem, e amanhã, se amanhecer primavera? A noite tem cheiro de flor...

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