"É claro que amanhã fará um dia
bonito
- Mas vocês terão que madrugar"
Virginia Woolf
Há um comichão que me arrefece até os ossos: a vida na
madrugada. Decerto que a noite é suave, não apenas o S. Fitzgerald,
mas também compartilho de tal usufruto. A vida é doce depois da
meia noite. Experimente esgueirar-se na janela do teu quarto: a lua que me observa
e furta meu sono exige admiração em dobro. Os ventos; ah, os ventos,
estes traduzem a suavidade da noite; então, com o rosto exposto na janela
ou mesmo estirado na cama, sinto o vento tépido que percorre toda a extensão
do meu corpo, assim, sem pudor lambe meus cabelos, vento bom: meus pulmões
ficam esotéricos.
A madrugada, deveras, nos diz um pouco do que somos. O silêncio que ecoa
irrefletido em mim um vazio e o nada que se encontra com o infinito. O pôr
de movimento de cabeça para cima e pronto: um céu multicolorido
de nuanças azuis com um brilho rotineiro: um rincão indecifrável.
As estrelas e seu colorido monótono perseguindo a existência como
primeira manifestação a causa, porém, alheio. Fazer usucapião
da noite é tornar-se poeta do submundo.
É imprescindível destacar também o lugar-comum; claro,
todos sabem que a noite guarda seus mistérios. Realizo a busco do meu
como no mito de Sísifo: uma querela a cada bocejo que se reafirma com
a minha peleja de não dormir. Um novo round! Meu mistério
mor reside aí na pedra de Proust, meu benfazejo de filósofo: aquele
segundo que resiste, aquela noite que teima em cair, aquele mergulho ao impenetrável.
A solidão bem sei que é engodo ao dia, tens com a noite o seu
ápice.
O enlevo do não dito: como pertencer a si só na escuridão
que o domina, e basta. Um "beber-se a si próprio sem sede".
As nuvens flanando a cobrir a lua de forma esporádica. Ainda estou lá,
mesmo que hesitante - São Jorge na terra. Um trago de outra coisa far-me-á
ainda melhor tanto para dormir quanto permanecer acordado: como placebo para
notívago. - Faço a corruptela de Rimbaud: noite, sei saudar a
beleza. A vigília do tempo é a descoberta filosófica da
nossa importância: tentem!
Jung nos seus cantos litúrgicos dizia que em cada homem há um
princípio feminino (anima). De pensar que a noite dormita em mim; anima
meu aspecto inconsciente. Sou personagem ambivalente de Stevenson: procurando
aquele que em mim se esconde. O sol de Apolo meu estandarte de razão:
meu consciente. - Noite! Meu inconsciente sondado no talismã da lua.
Busco-a como um jovem goetheano sedento de paixão: abismo-me no véu
de maya desse amor... - A lua força cega, impetuosa, dama da noite: Joan
Crawford imortal e as estrelas como bassáridas: - Evoé! Deleito-me
nesta orgia cósmica: exploro a cosmogênese de mim mesmo.
O céu concomitante com a noite exerce este fascínio indescritível
sobre mim. A noite, por sua vez, é meu refúgio: não clamo
por ela, ela há de vir fatalmente até mim: a noite é uma
deusa: salve Nuit! sauver Nyx! Salvare Lilith! Hieros gamos
é minha ambição mais profunda e irreal, a mais viva! Um
prazer cabalístico. Meu sacerdócio sufi. - Calo-me! Pacientar
é sentir o burburinho da noite que vem de dentro.
Apenas Proust não me deixa sair incólume da vida. Sinto de tal
modo à noite dentro de mim. Um tempo incessante, e um Brás Cubas
que me recomenda carregar um relógio na algibeira para estar ciente da
hora exata quando fenecer. Tomo um susto, estou atônito, e: meio dia!
Meio dia, não! Durmo - após a faina de permanecer acordado - com
a noite que me tragou dentro dela e me fez perder em sono. O corolário
é que me impacienta: a consequente falta de vigor, o desânimo...
Que a noite nos reserva? Reside aí minha contenda ao ponto de não
suportar a lucerna que me risca os olhos ao acordar deparando-me com o relógio
que decreta: meio dia! Este sim é o meu pesadelo. Já dizia meu
amigo Gabo: "deveríamos sonhar mais, e dormir menos".
Tudo isso porque a noite, do regozijo, também é aquela que me
subtrai a manhã. De pensar que serei privado do sol cujo brilho enlouquece-me
como os campos ensolarados da Provença francesa enlouqueceu a Van Gogh.
Da mesma forma privado do 23 de setembro rasgando o dia: o levantar cedo, meu
quarto irradiado de luz, o banho gelado e doce pela manhã, o pássaro
cantando no quintal... Bem, e amanhã, se amanhecer primavera? A noite
tem cheiro de flor...